sexta-feira, 28 de agosto de 2009

A POESIA DE ADÉLIA PRADO E A PSICANÁLISE:A ENCARNAÇÃO DO REAL (Cristiana Facchinetti)

Qual a relação entre psicanálise e literatura? Duas vias podem ser abordadas: uma vez que a cultura encontra-se como tema de estudo da psicanálise, seus produtos, incluindo neles a literatura, devem ter lugar em sua pesquisa. Este parece ser o caminho tomado por Freud, que utilizou personagens e obras para "vislumbrar a vida imaginária dos homens".

No entanto, Freud acaba por apontar outro viés que nos encaminha para um mais além do imaginário: o fenômeno literário passa a ser também pesquisado sob o ponto de vista de um inapreensível para a ciência, denominado por ele como prazer preliminar.

A partir da trilha iniciada por Freud, Lacan se volta de maneira sistemática para a literatura, propondo uma concepção para esta que se distancia de um tratamento de sujeito dado às personagens.

"A Carta Roubada"é um texto que permite-nos verificar tal reflexão. Nele, as personagens são elos de uma cadeia simbólica que se alteram e deslocam-se sob a influência da carta (a letra) como significante. A partir de tal formulação, as entrelinhas do texto surgem como inscrição no discurso e nos seus possíveis efeitos de sentido. A literatura é aí pensada como aquilo que resulta da sublimação e do desejo que se sustenta na cadeia significante.

Entretanto, e é aí que a questão nos interessa particularmente, só haveria sublimação no contexto do que Lacan vai chamar de boa neurose. Assim, se a sublimação supõe um saber capaz de produzir a obra, tal saber implica, por outro lado, levar a escrita até os limites máximos de si mesma, ao mesmo tempo em que a mantém presa a um laço social, isso é, produzindo um discurso que possa ter sentido.

Trata-se, portanto, de uma inscrição do real no simbólico, inscrição essa sempre parcial, inacabada, mas que deixa apresentar o real na sua dimensão de presentificação primeira no psiquismo. Tal dimensão aponta para uma tensão entre o saber e aquilo que não é passível de se acessar pela via do conhecimento.

Um poeta em carne

A poesia de Adélia Prado está justamente compreendida naquilo que aponta para o impossível: o real. Tal modo associa-se ao corpo erógeno, à carnalidade do desejo, que se apresenta como uma obra onde o campo da afetação e o da intensidade pulsional comparecem com sua força, onde pode irromper o novo em sua brutalidade carnal e surpreendente.

É neste nicho que se abre, no esburacar-se das sedas, que se produz a obra de Adélia Prado. Longe de dissipar seu pulsar erótico e erógeno num eterno mirar de seu próprio umbigo, ou de controlar e acorrentar o mundo que o cerca, o poeta põe-se defronte ao mundo e é por ele atravessado.

O poeta recusa a condição de gauche / coxo na vida. Sua delimitação crucial é muito mais sua condição de poeta e o fato de que tal condição particular lhe abre uma porta, um a-mais para uma nova possibilidade: a de ser desdobrável.

Tal sina dirige a poesia retroativa e paradoxalmente para a (re)inauguração do sujeito, constituído e constituinte da carne mesma: não é preciso esquivar-se do mundo e de suas impressões uma vez que a Coisa falta. Ao invés disso, trata-se de desejar e de comungar sensorialmente com seus objetos. Tal comunhão, vale dizer, se faz através das "sensibilidades sem governo".

Comungar com o mundo e com seus objetos é, antes de tudo, admitir-se elo de uma cadeia onde o que realmente importa é o desdobramento sensível dos corpos. E diante de tal insuficiência, ao poeta não é dado prescindir da poesia.

Ao contrário, justamente de suas faltas é que se instala a avidez do poeta. Dos seus limites e finitude mantém-se uma força que o põe em processo de criar um imaterial que, para sua perplexidade, está sempre em fase de advir. Assim, é a ausência de conhecimento e saber que o impelem na construção sempre nova de uma memória, de traços mnêmicos moventes, constitutivos e criadores do presente do poema.

Na ausência do mundo organizado do simbólico, a vocação poética que lhe é possível diante de sua intensidade é a da exaltação da carne: a carne incorruptível. É justamente a poesia que permite à carne manter-se atada ao mundo e mesmo ressuscitar - "A poesia me salvará".

Mas se a poesia salva, isto não significa que através dela possa-se tapar o furo que nos leva ao desamparo. Estando atingido pela brutalidade das coisas, ao poeta não é dado proteger-se: o que seu deus lhe concede é não descansar e ser por tudo ferido de morte. Mas vale apontar que tal dor reflete-se em dádiva, em alegria de viver, em gozo do corpo e da alma.

De fato, sua poesia mística, ao invés de colocar-se no lugar da crítica e do abandono do mundo, ou mesmo de propor a salvação ou solução deste, aponta muito mais para a dispersão no corpo.

Podemos dizer que o fundamento da poética adeliana é a adesão ao sensível, num ato carnal com aquilo que poderá tornar-se significante, mas que vem ao nosso encontro como percepção imagética que se marca na ausência de um nome e que passa a ter sentido ao ser nomeado.

A poesia atinge seu ápice quando consegue ser a mais pura manifestação do sensível uma vez que, de tudo o que pretendem explicar, analisar ou traduzir, "as palavras só contam o que se sabe". Deste modo, aquele que acha que diz está apenas repetindo. Na verdade,

a palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda,

foi inventada para ser calada.

Em momentos de graça, infreqüentíssimos,

se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão.

Puro susto e terror.

Em Adélia Prado, a descontinuidade detectada por Foucault a partir do século XVII entre palavra e coisa, parece dissolvida . Aqui, a palavra é tratada ora como a Coisa -

Quem entender a linguagem entende Deuscujo Filho é o Verbo.

Morre quem entender.

Ora como coisas do mundo, onde o que importa é a sonoridade de que dispõem, a estrutura que criam, muito mais do que seu significado. Os fragmentos das conversas dispersas, estes também são poesia. A palavra mistura-se aos objetos do mundo, ela própria é objeto. O ato de escrever e fazer poesia estão então próximos à música que se desdobra nos ouvidos

Se quiser, ponho agora a ária na quarta corda,para me sentir clemente apaziguada

A fala, nesta obra, comparece concretamente fazendo parte da vida. O mundo que a linguagem evoca existe como a própria linguagem, do mesmo modo que corpo e alma não suportam divisão. Mais uma vez, a fratura sujeito-objeto na perspectiva da linguagem e da dissolução mística parece elidida.

O eu-poeta e o mundo estão sempre prestes a nascer, morrer e ressuscitar, seu corpo traz sempre uma ferida aberta para todas as materialidades que, como corpo estranho, marcam-nos de modo novo.

Em Adélia, o sujeito está sempre advindo, sendo aquilo que não pára de se inscrever no mundo por ele mesmo criado: um sujeito nada pragmático, útil, mítico, ideológico ou neo-liberal, mas uma eterna possibilidade de criação de um novo sujeito e de um novo mundo que inaugure uma singularidade capaz de parir novos reinos: afinal, se dor não é amargura, pode ser a travessia para um novo começo.

3- O poeta, o psicanalista

Como se a própria estrutura do fenômeno literário - e sua característica de criação de um novo significante que não tapa a verdade do impossível - já não bastasse para justificar o interesse da teoria psicanalítica pela literatura, há um outro eixo de fundamental importância para o tripé psicanalítico e que a poesia de Adélia parece fazer florescer particularmente: a clínica.

De fato, Lacan liga a escrita poética à interpretação psicanalítica quando nos diz que o analista deveria ser poeta ou poata. Torna-se imprescindível aproximarmo-nos ainda mais da escritura, de modo a nos avizinharmos do que Lacan pretende ao fazer tal afirmação.

A poesia, que é efeito de sentido, é também efeito de furo. Ela não se situa, portanto, no terreno do significado, se fechando num todo possível, mas parte para os limites do impossível. O sentido no discurso analítico tampouco é simplesmente o significado de um discurso. Ele é efeito de sentido, como na poesia.

Sendo assim, a poesia e a análise existem por permitirem interpretação. Do mesmo modo que o escritor lapida o excesso de modo a produzir o novo em sua poesia, o setting deve ser fecundo e produzir um novo significante que seja fecundo também - é o efeito de furo - e dar um sentido - é o efeito de sentido. Consistência efetiva do real e do imaginário, portanto.

Quando tratamos aqui de um significante novo, partimos do pressuposto de que este seja um significante necessariamente inventado, que se distingue em sua singularidade e diferença daquele dado ao sujeito ao advir.

Apenas deste modo a produção do sujeito pode não ser da ordem da repetição, rememoração e elaboração, mas da ordem da fecundidade da invenção. Ao parir este significante novo, o sujeito se engendra como sujeito da diferença e pode dar vazão às intensidades. Esta é sua fecundidade:

"(...) Quero comer o mundo e ficar grávida, virar giganta com o nome de Frederica, pra se cutucar na minha barriga e eu fredericar coisas e filhos com a cor amarela e roxa, fredericar frutas, água fresca, as pernas abertas, parindo. Por dentro faço mel como colméias, põe tua língua no meu favo hexágono."

Quando Lacan une a escrita poética à interpretação analítica, quer sublinhar que a escrita não é aquilo através do qual a ressonância do corpo - a poesia - se exprime, se explica ou significa. O que importa nela é muito mais o seu aspecto essencialmente sonoro, seu aspecto de objeto concreto que se vê, a palavra como pedra bruta, a consistência do corpo como real.

Outro aspecto da poesia, inseparável da produção do novo, é o fato de ter efeito de sentido, consistência do imaginário. A poesia faz com que o significado e/ou o mundo possam surgir, criando uma realidade.

O efeito de sentido não é imaginário no sentido da ilusão, do engodo, mas aponta para o registro do imaginário em sua consistência, ou seja, o real. É o ato de dar um nome, que se nomeie alguma Coisa (das Ding), que faz surgir a dimensão das coisas( die Sachen), as quais extraem seu fundamento do real.

Escrever é pôr na página, até criar a obra, a relação do escrito com a corporeidade e também com o Outro; é transformar o imaterial e a relação não-recíproca numa relação de pura diferença, mas que ainda assim traga a marca de um encontro possível. Afinal, entre a escritura e a obra há uma ruptura violenta, a passagem do mundo onde tudo tem sentido para onde nada tem sentido ainda, mas para tudo o que tem sentido remonta como em direção a sua origem.

É neste processo que o sujeito advém como efeito de subjetividade ligado ao gozo absoluto. Esse sujeito é corpo. Cada uma das marcas pela qual passou o desejo foi delimitando-o. Um corpo, diz Lacan, isso se goza por corporizá-lo num sistema de sentido e de furo.

De que ordem então é a consistência do corpo? Convém observarmos que sensação e percepção aparecem como modos do ser-corpo. Sensação quanto à palavra, percepção quanto à oração e, finalmente, imaginação quanto à relação entre duas orações e a pausa. O corpo – isso se goza ao produzir a imagem. Se o poeta, cujas palavras fazem imagem, encanta, é através do gozo consigo mesmo que ele comunica. O que não impede que o gozo na imagem - e o gozo do Outro em geral - possa ser o gozo mortífero por excelência - há sempre a contramão do narcisismo exacerbado e da pulsão de morte.

O sujeito separado não é mais o corpo do significante puro, mas é verbo, é fala. O corpo se esvazia e recebe nele o não-significante. É aí na fala que se produz o gozo puro constitutivo do inconsciente - ele ex-siste no corpo. O corpo do sujeito onde se ligam o não-significante e o significante é símbolo. A poesia reencontra "alíngua" materna, mas através do discurso.

"O meu saber da língua é folclóricoMuitos me argüirão deste pecado"(...)'belo vale, por que belo vale'este som de leite e veludo.Quis dizer nêspera e não disse."

BIBLIOGRAFIA

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1 FREUD, S., Der Wahn und die Träume in W. Jensens Gradiva, SFS, Frankfurt, S. Fischer, vol. 10, 1906-7, pgs.9-86.
2 FREUD, S., Der Dichter und das Phantasieren, SFS, Frankfurt, S. Fischer, vol. 10
3 LACAN, J., Seminário sobre a Carta Roubada, Escritos, São Paulo, Perspectiva, 1966, pgs.17-68.
4 PRADO,A .,Grande Desejo, Bagagem, p. 20
5 PRADO, A.,"Os Acontecimentos e os dizeres" Poesia Reunida.
6 PRADO, A., Poesia Reunida. p.22
7 PRADO, A., Poesia Reunida. p.22
8 Ave, ávido./ Ave, fome incansável e boca enorme,/come./ Da parte do Altíssimo te concedo/ que não descansarás e tudo te ferirá de morte:/ o lixo, a catedral e a forma das mãos./ Ave, cheio de dor. IN: PRADO, A., Anunciação do Poeta, Poesia Reunida, p.75.
9 PRADO, A., Poesia Reunida. p 57
10 PRADO, A.,Solte os cachorros, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1979, p.83
11 BLANCHOT, M., L'Espace litteréraire, p.260.
12 LACAN, J., O Seminário, Livro XX, Mais, Ainda, p. 35
13 PRADO, A., O Coração Disparado, Rio de Janeiro, Salamandra, 1984,p.78
Ccontato com a autora:cristianafac@rionet.com.br