segunda-feira, 12 de outubro de 2009

O Corvo, o Analista e a Interpretação Part II.

O EQUIVOCO

Partiremos do seguinte pressuposto: o lugar de honra dado por Lacan neste momento de seu ensino à poesia en detrimento da fala plena liga-se à estrutura singular do que é por ele designado como o "tour de force" do poeta que consiste na articulação de uma palavra vazia a uma palavra cheia. O estatuto privilegiado desta articulação específica, enfatizado por Pierre Bruno , é o que permite à poesia dar um lugar ao real apesar de sua inserção estrutural no terreno da picaretagem . Note-se que ao descrever este tipo de articulação não fazemos mais do que delimitar a estrutura geral de uma afirmação equívoca do ponto de vista formal. A ambigüidade se instaura com efeito a partir de uma torção sobre aquilo que na língua é, segundo Lacan, "amadurecimento de algo que se cristaliza com o uso" como por exemplo as significações do dicionário. Estas são deslocadas por um novo sentido constituindo uma palavra com duplo sentido. É por esta razão que ele afirma em seguida que a atividade poética nasce de uma violência à língua. Isto equivale a dizer que só existe ambigüidade e duplo sentido à partir de uma torção exercida sobre o tesouro de significações da língua. Sua instalação depende de uma palavra com um único sentido precedendo a palavra com duplo sentido. Esta só se constitui porque apóia-se nesta palavra tida por unívoca que é por vezes apenas implícita. Introduz-se então uma questão fundamental: como diferenciar a interpretação equívoca de uma proposição equívoca qualquer? Esta questão se desloca imediatamente para um nível "técnico" transformando-se em: se o equívoco interpretativo tem um estatuto específico do ponto de vista formal, como produzi-lo?
A ênfase dada por Lacan neste seminário, não tanto na palavra vazia ou na palavra cheia mas na articulação destas como instrumento do efeito poético, nos indica que é menos a palavra cheia que o efeito desta mudança de registro (ou seja a passagem da significação ao duplo sentido) que deve interessar-nos aqui. Eis então outra indicação de Lacan a este respeito que me parece fundamental: "a metáfora e a metonímia só tem alcance interpretativo na medida em que elas são capazes de funcionar como outra coisa. E esta outra coisa da qual elas exercem a função é exatamente aquilo pelo qual se unem fortemente o som e o sentido". Trata-se de uma referência ao mesmo tempo clara e enigmática. O texto é simples, lê-se facilmente o que é dito, mas desvela-se uma "outra coisa" e uma "outra função" que parecem nos escapar.
Esta passagem, ao menos em sua primeira metade, esclarece-se a partir do que Lacan nos diz a seguir: "a poesia é efeito de sentido e também efeito de lacuna" Compreendemos então que trata-se primeiramente de lembrar que cada criação de sentido é acompanhada por um tempo de non-sens anterior logicamente à instalação do novo sentido. Este momento lacunar, que Lacan designa por vezes como "efeito de sentido" (real) opondo-o ao "sentido" (imaginário), liga-se àquilo que funda a interpretação. Ele se dá a partir da abertura do intervalo S1-S2 por ação de uma articulação significante singular que suspende por um instante a significação. Não se trata de um intervalo real mas sim virtual, que se realiza neste instante de horror suturado em seguida por um sentido novo.
A palavra cheia se constitui assim a partir do cristal da língua, instalando-se com o novo sentido o qual efetua uma verdadeira Aufhebung do sentido esperado, conservando-o e anulando-o ao mesmo tempo. No instante do non-sens, neste buraco, jaz a possibilidade de que em seguida se estabeleça um efeito de sentido inédito: um acontecimento que não responda à demanda com um sentido a mais (que não será nunca o certo, o exato) mas com outra coisa, um "extra". Em outras palavras, a interpretação apóia-se nesta propriedade da ambigüidade significante para introduzir um "mais-de-sentido", o qual, devido à sua inserção no limite da significação, passa de um "sentido-a-mais" a um "a-mais-do-sentido".
A segunda parte da passagem que examinamos aqui interessa-nos especialmente porque parece-nos indicar os meios pelos quais podemos chegar a este efeito. Lacan revela que o equívoco interpretativo se funda na função daquilo que une fortemente o sentido e o som. Entretanto, ainda não saímos totalmente da obscuridade. Com efeito, como tratar esta outra coisa que liga som e sentido e que dá um alcance interpretativo à ambigüidade?
Marco André Vieira