quinta-feira, 8 de outubro de 2009

O Corvo, o Analista e a Interpretação Part. I


A poesia sempre foi vista com bons olhos por Lacan, especialmente em seus últimos seminários onde é associada explicitamente à interpretação. No L'insu que sait... por exemplo ele afirma que devemos nos inspirar da poesia para intervir chegando a lamentar-se por não ser poetabastado (pouâtassez) . A poesia realiza o que na interpretação deve-se buscar: suspender as significações imaginárias evitando a armadilha do sentido. Para tentar situar o modo como Lacan circunscreve este efeito poético, examinarei algumas de suas indicações neste seminário utilizando O Corvo de Edgar Allan Poe como ponto de apoio. Uma poesia que explora o non-sens - como é o caso da tradição poética oriental na qual se insere François Cheng citado por Lacan neste seminário - forneceria provavelmente uma ajuda mais direta em se tratando de delimitar a inserção do ato poético num para-além do sentido. Parece-me entretanto que podemos fazê-lo de modo bem mais eloqüente tomando como ponto de partida uma poesia que recuse tal concepção da ação do poeta, como no caso da de Poe. Este concebe a poesia unicamente no terreno do sentido, constituída a partir de uma ação racional e inteiramente planejada, sem resto - posição reivindicada explicitamente a propósito do corvo .Tomemos inicialmente a oposição estabelecida neste seminário entre a poesia - que busca escapar da prisão da significação - e a picaretagem (escroquerie), denominação lacaniana de um certo tipo de enunciados cujo objetivo é constituir Um sentido. Estes últimos se amparam no ideal da univocidade, recusando o duplo sentido, e delimitando um campo onde se propaga a paixão das "palavras vazias", sonho do puro enunciado sem enunciação. A filosofia será inserida neste espaço sendo descrita como "o campo de experimentação da picaretagem".Contudo, as críticas de Lacan à filosofia e sua "vontade de sentido" (vontade de redução do sentido a uma significação delimitada), não visam a introduzir uma apologia do duplo sentido e da ambigüidade. Ele não opõe à palavra pretensamente unívoca a palavra indecifrável, o puro sentido. A constituição de "palavras cheias" com dois, três ou dez sentidos não corresponde à operação poética em questão. Podemos perceber assim que a oposição palavra vazia x palavra cheia passa a segundo plano, em detrimento da oposição sentido x sem-sentido (pas de sens) representada pelos pares filosofia/picaretagem x psicanálise/poesia. Lacan relativiza assim uma oposição que desempenhou um papel fundamental nos primeiros anos de seu ensino pois ele considera aqui que tanto a palavra vazia quanto a palavra cheia se inserem no "sistema de oposições e de significações" da "lei do discurso" . Neste sentido elas não existem separadamente, funcionando apenas como entidades ideais ambas no nível do sentido. De fato, toda fala implica nessas duas suposições: a possibilidade de um sentido único e o duplo sentido. Enquanto a primeira persegue um ideal de univocidade a segunda, eterniza sua busca por encarnar seu fracasso. Em resumo, a oposição privilegiada neste ponto por Lacan se estabelece entre o que alimenta o sentido e o que se situa fora dos seus limites. O "próprio da poesia" é desvelar a ligação entre estes dois espaços. O efeito poético se dá assim não como Um sentido nem como um excesso de sentido (este é apenas uma variante daquele) mas sim como uma abertura ao sem sentido. Uma vez que este "além" (ou "aquém") do sentido corresponde ao real, e uma vez que o nó borromeano é a figura que permite situá-lo, poderíamos dizer a mesma coisa de outra maneira: a poesia torna possível a passagem do Um da significação à articulação ternária do nó.Esta operação poética é bem mais fácil de ser imaginada do que efetivamente realizada. Com efeito, o fala-ser é ancorado ao Um, a suposição de Um-sentido é estrutural. Falar do nó não basta para afastar esta dimensão totalizante descrita por Lacan como o "visgo" (engluement) do sentido, pois sua figuração se situa ainda a nível imaginário. Ela presentifica o Um e não o múltiplo que ele deveria traduzir. Entretanto, tentar rejeitar esta impregnação imaginária recusando o quadro da significação, implicaria em calar-se definitivamente, pois não há nada (de existente) para além deste. Deve-se então segundo Lacan "despertar", "abrir-se ao real", a partir do simbólico. Esta operação, que podemos chamar de efeito de sentido ou de interpretação, deve se dar como o corte que força em direção ao nó a partir das coordenadas fornecidas pelo Um da significação. Encontramos assim o que Lacan descreve como "o próprio da poesia": partindo de uma rede imaginária de significações dada, estabelecer uma determinada articulação simbólica que, através da suspensão mesma destas significações, convocará o real. Torna-se possível assim a instauração de um laço real e não mais imaginário entre os três registros, remanejando o real do sintoma. Esta articulação significante particular sobre a qual Lacan fundará o efeito da interpretação corresponde, como sabemos, ao equívoco .
Marcos André Vieira