terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Os nomes dos modos de sofrimentos atuais, ou, Transtornos do Amor.


Jorge Sesarino

Quais são os modos de sofrimentos da atualidade?

O declínio da figura do pai e da conseqüente debilitação da lei simbólica, a degradação dos valores e a desvalorização da palavra estão na origem dos modos como o sofrimento humano se apresenta na atualidade. A crescente banalização da palavra desumaniza, o sujeito cala e o objeto, quando não o divide, faz Um com ele, não em Nome do Pai, mas em nome de um gozo totalizador. Somos todos órfãos e temos de escolher entre a ideologia edipiana do Nome do Pai ou a ideologia do gozo desenfreado.

O discurso atual orienta o desejo pela via da unificação dos modos de gozar, através dos modelos de objetos, os gadgets que a tecnologia oferece para consumo.

Esse enlaçamento sujeito-objeto resulta em nova modalidade de gozo e sofrimentos chamados de “novos sintomas”. São as patologias das adições. Tal homogeneização de gozos causa o sentimento de exclusão em quem não tem acesso ao mercado de consumo desses objetos falicizados. A conseqüência óbvia é o enfraquecimento e ruptura do laço social.

Vivemos em tempos de grandes mudanças onde segregamos toda e qualquer diferença: o pobre, o triste, o feio, o diferente. Queremos o capitalismo como modelo econômico e a democracia como modelo político universal, e para isso admitimos guerras cada vez mais covardes, absurdas e cruéis.

Estimula-se a competitividade como a grande valia e aqueles que não podem ou não querem competir ficam sem espaço e sem visibilidade social. Sem o sentimento de pertencimento, ficam ameaçados física e psiquicamente na sobrevivência. Abandonados e excluídos resta-lhes, ainda, a possibilidade de inventar outra história de si mesmos, bem ou mal sucedida, afinal, não vivemos numa sociedade de castas, há mobilidade social, um pobre miserável pode tornar-se um rico milionário, tanto no submundo do tráfico quanto no mundo da arte, como artista, jogador de futebol, etc..

A padronização dos sintomas ofertada na esteira dos CIDs e DSMs e as tentativas das neurociências para explicar o psiquismo em bases orgânicas, parecem mais servir ao poder dominante da indústria farmacêutica e seus lucros obscenos, através da medicalização de toda forma de sofrimento, incluindo, a cada dia mais, a medicalização da infância, os sofrimentos das crianças.

Diagnosticadas ou enquadras, as crianças antes chamada de peraltas, atualmente são reconhecidas como hiperativas, as inibidas, de depressivas, etc. e por isso medicada. Seus comportamentos considerados inadequados para os padrões atuais esperados (ideais?) passam a receber palavras, signos como Transtorno de Déficit de Atenção, Hiperatividade, TDA/H[1] e tantos outros novos nomes, que representam um doente para um medicamento ou mais um consumidor para mais um produto de mercado. É preciso ainda lembrar que a criança é afetada pelos pais e, portanto, que a criança é o sintoma dos pais?

A medicalização excessiva e irresponsável altera a implicação subjetiva e desresponsabiliza o sujeito, que passa a ser representado por outros significantes: depressivo, bipolar, anoréxico, agorafóbico, panicoso, hiperativo, etc.. Também altera sua subjetividade uma vez que o sujeito é identificado a nomes holofraseantes, alienantes ou anestesiantes da sua condição. A patologização desses sintomas rechaça tanto o sintoma psíquico quanto o sujeito do inconsciente.

As insistentes ofertas de consumo veiculam promessas de felicidade inatingíveis. Para alcançar a felicidade ou diminuir o mal-estar, apela-se a alternativas falsas e ilusórias do consumo abusivo e indiscriminado das substâncias psicotrópicas. Afinal, para que sofrer se há remédio para tudo: para dormir, para acordar, para transar, para emagrecer, para engordar, para crescer, para defecar, para urinar, para viver e até para morrer.

Mas então porque, ainda assim os sofrimentos persistem? Os transtornos alimentares, a pandemia de obesidade que estamos vivendo, estão diretamente ligados a vontade de gozo. Responde-se como que com passagem ao ato ao imperativo da demanda desse Outro totalizante, que nomeia cada um de consumidor, cliente, cidadão, trabalhador, eleitor, dependente, e tantos outros nomes. A lógica do mercado é que para satisfazer um desejo pode-se fazê-lo a qualquer preço. É a ética das finalidades?

A experiência do amor é uma experiência comum dos seres humanos que todos compartilhamos de uma forma ou de outra, a começar pela boca – nossa primeira forma de relação com o mundo. As patologias da alimentação, os ditos transtornos alimentares como a anorexia (amor-exias? [2]), a bulimia, a obesidade, mas também as toxicomanias, o alcoolismo, podem ser pensadas como transtornos do amor, diretamente relacionados com um luto que não pôde ser feito na origem.

O amor não causa patologias, mas quando ele não se faz metáfora através do luto primário é rechaçado de alguma forma e então surgem patologias. Podemos dizer que há transtornos do amor quando a função do amor na estrutura não possibilita o amor de transferência. Não é isso o que se denomina fenômeno psicossomático? As neuroses são modos de sofrimentos relativos ao amor, são impasses transferenciais, são interdições no campo do amor.

O corpo é o suporte dos afetos e o lugar do sofrimento. Perguntas sobre o sofrimento aparecem no pensamento de quem busca um tratamento psicanalítico, e o seu alívio é o motivo principal que leva alguém a pedir uma análise. O amor do pai ou amor ao pai, base do ideal do Eu, possibilita o ideal do bem e a felicidade como possibilidade de encontro com o bem. A psicanálise busca restituir a figura do pai para recompor a relação do sujeito com a lei, e escuta o sintoma como o refúgio de onde o sujeito expressa o seu mal para poder agarrar o seu bem.

Por se agradar mais do seu sintoma do que de si mesmo não pode amar e se deixa sofrer e adoecer. Entre a miséria neurótica e a infidelidade comum, hesita e não escolhe, ou escolhe não escolher e aposta no acaso e na sorte.

Conceber o amor como uma forma de suplência à completude do ser aproxima Lacan de Heidegger, para quem o ser só existe na linguagem. O fundamento do amor, mas também do erotismo está na relação especular, não reduzido à dimensão imaginária como aparece nas neuroses que são sofrimentos, transtornos relativos ao amor. O amor é um dom constituído no plano simbólico e sustentado na cadeia significante.

No Seminário XX, Lacan afirma que a psicanálise só opera pela via do amor e que é o amor que faz surgir o desejo. A fórmula da transferência, SsS (sujeito suposto saber), não se distingue do amor: “àquele a quem suponho o saber, eu o amo”.

Freud (1929) recomenda que se escolha a infelicidade comum e a felicidade possível pela via transferência, um dos nomes do amor que possibilita amar e trabalhar. A transferência é a condição para a invenção de um novo amor a partir do patológico do sintoma como invenção subjetiva diante da falta inevitável do Outro. O amor faz sofrer, mas é também o único recurso com o qual se pode fundar um lugar no mundo. Não há cura sem o amor.

Em Inibição, Sintoma e Angustia (1926) o sintoma aparece como uma modalidade de satisfação pulsional. A função dos sintomas é retirar o eu das situações de perigo. O sintoma ‘amigo’ possibilita o laço social para que o sujeito possa emergir na existência e ser reconhecido. Geralmente é quando o sujeito procura um analista. E o que temos para oferecer? Convidamos a falar dos transtornos do amor, a por em jogo a palavra. Pela via da demanda e sustentado no desejo o amor pede amor. Aí toda forma de sofrimento, as doenças do corpo, os transtornos do amor, têm uma chance.


[1] Convém aqui fazer referência a uma conferência do Dr. Alfredo Jerusalinsky proferida em junho de 2003, na Fundación para el Estúdio de los Problemas de la Infância, Centro Dra. Lydia Coriat em Buenos Aires. Acessível no site: http://www.appoa.com.br/noticia_detalhe.php?noticiaid=35&PHPSESSID=bbea8b84cbb064f37445c2e5eac26344

[2] Termo usado pela psicanalista argentina Mirta Goldstein. Acessível no site: http://www.elsigma.com/site/detalle.asp?IdContenido=3736

Um comentário:

  1. Que maravilha!
    Amei cada linha deste texto

    " A crescente banalização da palavra desumaniza..."

    Realmente, o efeito flash, fast, modelagem unificada, uniformidade, padrozinação, não significância (relações) ou significância torta (no caso do rótulo, após receber um diagnóstico obtido da mesma forma efêmera, rápida)
    Digo torta pq me parece torta, atravessada, não correspondente.
    O pior é que as pessoas se acostumaram a procurar um rótulo para se agarrarem; já faz parte sair da sala do médico com receitinha na mão...bengalas, bengalas... "o sintoma aparece como uma modalidade de satisfação pulsional."
    Me agarro ao sintoma para não enfrentar o real... E ele é doce, e me dá um rótulo, meu escudo...
    Fujo de mim, não me respondabilizo
    E assim vou me perdendo...

    "Somos todos órfãos e temos de escolher entre a ideologia edipiana do Nome do Pai ou a ideologia do gozo desenfreado."

    O amor pede amor!

    Parabéns! Baita leitura!

    Abç

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