segunda-feira, 30 de novembro de 2009

A falta faz Poesia


A falta faz Poesia

Gloria Leal

Trabalho publicado, originalmente, no Anuário Brasileiro de Psicanálise, 1992/1993, Editora Relume-Dumará.


La raiz del lenguaje es irracional y de carácter mágico. El danés que articulaba el nombre de Thor o el sajón que articulaba el nombre de Thunor no sabia si esas palavras significaban el dios trueno o el estrépito que sucede al relámpago. La poesia quíere volver a esa antigua magia.Sín prefijadas leyes, obra de un modo vacilante y osado, como si caminara en la oscuridad. Ajedrez misterioso la poesia, cuyo tablero y cuyas piezas cambian como en un sueño y sobre el cual me inclinaré después de haber muerto.

Jorge Luis Borges


O anjo Damiel em "Asas do Desejo" de Wim Wenders torna-se humano por amor a uma mulher. No final do filme ele escreve: "Eu sei... agora... o que... nenhum anjo... sabe". O que Damiel sabe, segundo Betty Fuks,2 é que a condição de mortal faz o sujeito buscar a imortalidade no desejo. Por sua vez, a trapezista Marion conquistou a angelitude ao perceber que a vida e os objetos que nela desfilam são apenas transitórios, mas nem por isso menos belos.
Stuart Schneiderman diz que imortal significa simplesmente não mortal e não mortal nem sempre quer dizer vivo para sempre ou eternamente. Não mortal é também uma característica dos mortos. "Só os vivos são mortais. A busca da imortalidade, que geralmente interpretamos como uma busca da vida eterna, um desejo de negar a morte, é apenas outro nome para o desejo da morte."
Desejo de vida. Desejo de morte. Desejo súbito de fazer uma poesia. Tão necessária. Uma que leve embora essa angústia, o soluço engasgado. Uma que traga de volta o sonho. Poesia é tentativa de realização de desejos. Difusos, confusos mesmo, os sentimentos só serão entendidos pelo autor depois. Depois de dar à luz sua poesia.
Ser falante pode ser praga mas ser escrevente é bênção. É um dos possíveis destinos da pulsão. De vida? De morte? O poeta não vive tais dicotomias. Escrever poesia é lidar com o mistério sem o compromisso, aliás impossível, de explicá-lo.
Se queremos explicar o mistério, somos cientistas. Se o respeitamos, mesmo privando da sua identidade, somos poetas e dizemos coisas que não sabíamos saber. Fernando Pessoa4 pergunta:
Tens, como Hamlet, o pavor do desconhecido?Mas o que é conhecido? O que é que tu conheces,Para que chames desconhecido a qualquer coisa em especial?
O mistério, o inusitado, o imprevisível convivem como a poesia. Também na psicanálise. Entre uma linha e outra, nos pedaços em que não se escreve nada, aí ele surge. O poeta e o Inconsciente falam por enigmas.

Mi vida que no entiendo, esta agoniaDe ser enigma, azar, criptografiaY toda la discordia de Babel.

Jorge Luis Borges


Escrever como quem inspira (um verso) e expira (outro verso). Exercício respiratório, associação livre de idéias, catarse, espasmo, orgasmo, seja o que for, faz bem. Apesar do sofrimento de não conseguir dizer o que se deseja. Como sempre. Apesar de o Desejo não se inscrever, realiza-se, por alguns instantes, o desejo de fazer uma poesia. Plantar amores-perfeitos, narcisos e bromélias na borda do vazio existencial.
Lancan5 diz que em toda a forma de sublimação o vazio será determinante e que toda arte se caracteriza por um certo modo de organização em torno desse vazio. Sublinha a importância da Linguagem por lidar com o significante que é "aquilo que, na ordem das artes, confere sua primazia à poesia."
Jorge Luis Borges, no início de "El Golem", usando o termo arquétipo ao invés de significante, concorda com o pensamento lacaniano:
Si (como ei griego afirma em ei Cratilo)El nombre es arquétipo de la cosaEn las letras de rosa está la rosaY todo el Nílo en la palabra Nílo.
A linguagem precede o homem, é condição fundante do humano. Denunciadora e encobridora da Falta, ela nos impele à comunicação e nos remete à solidão. Linguagem é crime e castigo. Cime de Adão e Eva, que comeram o fruto proibido do saber e descobriram a sexualidade. Assim, foram expulsos do paraíso animal e condenados à liberdade. Perdemos o instinto, esse fabuloso programa de comportamentos, e ganhamos a pulsão, essa desconhecida.
Ganhamos a dúvida (quem somos? para que somos? somos?), a possibilidade de morrer (o que será então de mim?) e o desejo de fazer de conta que somos ainda animais naturais e que nossos desejos podem ser satisfeitos. Assim como as necessidades dos animais. Pura ilusão. O desejo do homem é insaciável. A completude tão almejada é impossível. Isto porque o desejo é definido pelo vazio. Um desejo aponta sempre para outro desejo e assim prosseguimos na crença insana de que existe um ou vários objetos adequados que podem ser encontrados no mercado da vida. À ilusão do encontro chamamos felicidade. Essa eternidade que logo termina.
Segundo Lacan o Inconsciente é da ordem do não realizado e é estruturado como uma linguagem. Ambos são regidos pela ordem simbólica. Os símbolos são criados a partir da ausência da coisa. Falamos e cantamos as ausências, o perdido e o nunca encontrado. Do "fort-da" do netinho de Freud até Fernando Pessoa:

E falta sempre uma coisa, um copo, uma brisa, uma frase.E a vida dói quanto mais se goza e quanto mais se inventa.

O ato poético lida com o impossível porque revela algo do Real, que é da ordem do impossível. Mas o poeta insiste, insiste em simbolizar o Real e seus infinitos desdobramentos. Insiste no desejo, ou nele o desejo insiste, de fazer outra poesia. Uma que diga melhor o que se quer dizer e não consegue.

Poesia
Gastei uma hora pensando um versoque a pena não quer escrever. No entanto ele está cá dentroinquieto, vivo.Ele está cá dentroe não quer sair.Mas a poesia deste momentoinunda minha vida inteira.

Carlos Drummond de Andrade

O conteúdo latente do poema, como o do sonho, também é mais rico que o manifesto. O poeta aspira ao poema perfeito porque a vida não é perfeita nem completa e ele se sente completo ao escrever. Mas o poeta escreve sem saber por quê.

Eu canto porque o instante existee a minha vida está completa.Não sou alegre nem sou triste.Sou poeta.

Cecília Meireles

O sentimento poético que vive em todos nós não pode ser transposto para o papel ou para a voz sem perda de substância. Algo se perde na transposição, como o objeto "a". Acontece que poesia se faz com palavras. As idéias e afetos servem como substrato. Há que transpirar o inefável e isto exige suor. Não é só derramar uns tantos sentimentos no papel, achar bonito e atravessar melhor a noite. Para a associação de idéias (livre como nenhuma fala de analisando) tornar-se arte, deverá ser trabalhada. Idéias e afetos são areia e água, argamassa da construção concluída "só depois". Então você acorda e vai ler o lindo poema da véspera. Acha um horror. Fuma dois cigarros em seguida, toma algumas providências caseiro-burocráticas e vai dar mais uma espiada no papel. Lê agora como se fosse de outro e de fato o Inconsciente é o discurso do outro. Resolve que pode melhorar o texto e aí começa a carpintaria.
É um trabalho letra a letra, palavra a palavra, linha a linha. Pouco sobra, quando sobra. Michelangelo divide as artes em "artes de pôr", como a Pintura, e "artes de tirar", como a Escultura. Na poesia ocorrem esses dois movimentos. Para que, além de terapêutica, seja uma boa poesia, é necessário primeiro estender os sentimentos livremente no papel e só depois fazer o corte de palavras. Isto confere intensidade ao texto e arruma seu coração.
A incompletude, a vazio, a angústia, a morte são muito falados na Poesia. O comum dos mortais sofre das mesmas perplexidades dos poetas. Assim sou eu. Assim é você. Monte de linhas embaraçadas, monte de palavras engasgadas, monte de todas as coisas vividas e morridas. No mar dos sentimentos, o poeta pesca suas palavras. O céu é do condor e a poesia, assim como a praça é de todos.
Borges dedica seu livro Fervor de Bueno Aires a quem o ler:

Si las páginas de este livro consienten algun verso felíz, perdóneme el lector la descortesia de haberlo usurpado yo, previamente. Nuestras nadas poco diferen, es trivial y fortuita la circunstancia de que seas tú el lector de estos ejercícios, y yo su redactor.


Recomendo fazer poesia, ou tentar. Cantar os seus exílios: paraíso perdido, mãe, pai, marido que foi embora, cidade natal, infância. Cantar até sentir que não está exilado nem sozinho. Somos parte de tudo e tudo parte de nós. Nada passou. Nada se passou a não sei um arrepio. De vida, de morte. Sossega, criança. Você morreu tantas vezes que já deveria estar acostumada.
A morte é a curva da estrada.Morrer é só não ser visto.
Fernando Pessoa
O poeta russo Sierguei Lessienin suicidou-se num quarto do Hotel Inglaterra, em Leningrado. Antes de morrer escreveu, com o próprio sangue, a última poesia. Seu amigo Maiakóvski, que continuou vivo por mais uns anos, mesmo sabendo que "Nesta vida morrer não é difícil / O difícil é a vida e seu ofício", declarou no poema dedicado ao jovem Lessienin:

Talvez, se houvesse tinta no InglaterraVocê não cortaria os pulsos.

Escrever poesia pode salvar a sua vida. Pelo menos de ser aborrecida, pouco vivida, distraída. Ajuda a conviver com o espanto de estar vivo desconfiando que vai morrer. Também salva a vida dos seus mortos, imortalizando-os. Ou enterrando no papel o que tem ser enterrado. O luto não precisa ser patológico.

Memória

Neste invento contra a morteque é a memóriavocê fica comigofica sempreE quando eu não mais lembraré o sinalde que você foi emboraAfinalmorrer não é assim como se pensaenquanto se pensaMorrer é se perder de sua história.

Gloria Leal

Notas bibliográficas
1 Borges, Jorge L. Obra Poética. Emecé Editores, Buenos Aires, 1977.2 Fuks, B. B. "Asas do desejo, signo do amor", in Anuário Brasileiro de Psicanálise, 1991.3 Schneiderman, Stuart. Jacques Lacan – A morte de um herói intelectual. Zahar, Rio de Janeiro, 1988.4 Pessoa, F. Obra Poética. Nova Aguilar. Rio de Janeiro, 1977.5 Lacan, J. "O Problema da Sublimação" in O Seminário, Livro 7, A Ética da Psicanálise. Zahar, Rio de Janeiro, 1988.6 Drummond, C. D. Poesia Completa e Prosa. Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1977.7 Meireles, C. Obra Poética. Nova Aguilar. Rio de Janeiro, 1977.8 Maiakovski, V. Poemas. Perspectiva. São Paulo, 3a edição, 1985.9 Leal, G. Polietama II. Timbre-Taurus. Rio de Janeiro, 1992.
Sobre a autora:
Gloria Leal é psicanalista, supervisora de Medicina Psicossomática, graduada em Psicologia, URFJ – 1968, e Medicina, FTESM - 1984, e pós-graduada em Psicologia Médica.É diretora do Centro Cultural Campo da Palavra: Artes e Ciências Humanas. Livros publicados: Politeama e Politeama II.Homepage: http://www.campodapalavra.art.br/e-mail: glorialeal@campodapalavra.art.br
Matéria publicada em 01/05/2000 - Edição Número 9

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

A Menina de Fabricio


-Sangra minha boca agora ou te como com minha vulva seca! Foi assim que ela apareceu ali em casa. Eu nem sei como ela entrou. Eu sai do banho e ela estava ali na minha sala. Eu tava com a toalha na mão e Ela vestia uma gravata e um sapato salto alto, eu não me lembro bem a cor, porque estava na penumbra. Não tinha mais nada nela. Tinha na mão uma gilete em forma de faca.
Não havia nada no seu púbis, alem dele mesmo.
Não havia nada nos seus peitos alem dos bicos esguios em minha direção. Eu sabia que era ela. Linda! Vagabunda! Como ela conseguiu entrar? Eu podia reconhecer aqueles olhos esguios que mais pareciam facas afiadas. E aquela boca... Eu sabia, que aqueles lábios finos e vermelhos, foram os mesmos que me tocaram da ultima vez.
Olha Doutor, eu não sei como isso aconteceu!
-Quem começa, você ou eu? Ela me perguntou. E com a gilete fez um corte no braco. E me olhando lambeu-o. Eu fiquei paralisado com isso. Meu membro nesta hora já extremamente arrochado faltava explodir. Sabia Vadia! Ela sabia que eu não resistia a uma gota de sangue escorrendo pelos seus lábios.
Era surreal aquilo. Tao branca e com a boca lambuzada de vermelho. Eu não sabia mais o que era realidade naquilo ali. Caminhou até a mesa. Ela sabia que eu estava paralisado. Eu podia ver bem as curvas daquela bunda branca. Nem grande, nem pequena. Para mim era o suficiente. Não, não, eu nunca gostei de coisas indiscretas. Puxou a cadeira e levantou a perna. Colocou-a sobre a cadeira e com o salto do sapato perfurou a almofada. Eu tremi todo com isso, senti os dedos dos meus pés apertarem o chão.
Nesta hora fez um pequeno corte na perna e com o seu indicador levou ate a boca: Doce, doce! Eu não conseguia me mover, tentava sair dali, dar um passo, mas não conseguia. E mesmo fazendo todo aquele frio eu suava mais do que o saco na praia.
-Tudo o que eu quero voce pode me dar, então, comece!
Foi dizendo isso que ela se sentou na ponta da mesa se encochando. Começou a ziguezaguear nas pernas com aquela gilete e eu vendo tudo aquilo não conseguia me mover. Foi então, que ela veio ate mim, se encostou em mim, e me sujou todo. Pegou no meu membro e passou a gilete nele como se estivesse apresentando-os um ao outro. Eu sabia que ela não faria nada ali. Na verdade eu sentia, só isso. Apertou meu membro e arrancou um pedaço da minha orelha. Eu não gritei. Soltei um grunido somente. Ela sabia que o que fazia era o meu maior prazer. Sorriu de canto. Lambeu minha boca. E me chupou ate que eu caísse no chão. Eu já não sentia mais minhas pernas quando ela colocou seu peito na minha boca.
- Arranca um pedaço de mim, moco!
Eu não podia. Naã conseguia. Estava tremulo e sentia tanto prazer que mal conseguia me mover naquele chão frio.
Ela riu de mim. Toda vez que ela vem ela sempre ri de mim.
Eu não sei o que ela faz mas me paralisa, fico assim, como estou agora. Nervoso. Inquieto por dentro. Com vontade que aquelas visitas não se acabem nunca. Mas ela sempre se vai. E quando volta nunca avisa.
Aquela vagabunda de mulher. Aquela Deusa da minha mais miserável realidade. Se esconde entre as madrugadas frias. Pegou a gilete cortou o mamilo e jogou na minha cara.
-Toma, desgraçadinho! E' isso que você é!
Come isso no seu cafe da manha se conseguir se levantar dai'.
Pegou meu roupão se vestiu e ao sair:
-Nem pense em mudar a fechadura. Sorriu. Eu sei onde você guarda seu carro.Saiu e bem devagar me trancou ali no chão segurando meu...-Ok, Fabrício! Sua hora acabou. Passe ali na recepção e marque hora para semana que vem. E por favor, cuide desse machucado na orelha.


Annycole

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Ridículas Palavras Recalcadas



Jorge Forbes

I

Aquela pena, caindo entre as árvores sobre o rapaz sentado no banco da praça, com cara meio abobalhada, lhe pareceu um lugar comum, um apelo fácil ao sentimento da platéia, onde ele estava. José se arrumou em sua poltrona e se preparou para não gostar do filme. Mas, pouco a pouco, o desinteresse foi se modificando, pois José começou a se reconhecer no personagem, tratado como um tonto por sua família, por seus colegas de colégio e que, no entanto. Desajeitadamente, ia obtendo sucesso na vida, sempre de maneira atravessada. O personagem ganhava corridas porque se punha a correr, era modelo para cantor de rock por sua disritmia, depois herói de guerra por inconseqüência e assim por diante.
O filme que lhe pareceu de início chato e sem interesse foi tomando corpo.
Freud dizia que um sonho parece ao sonhador, em um primeiro momento, dessa forma: chato e desinteressante, e que é só na medida das associações que o afeto e o interesse surgem. Pois assim se deu: terminada a sessão - de cinema - José estava lívido, aquela era a sua história. Que imenso esforço, pensou ele, lhe tinha sido até então imposto para ultrapassar suas deficiências, anunciadas como tais pelos outros.
Na sua casa familiar, em seu pequeno país natal, da América do Sul, o bom sempre estava em outro lugar: no Brasil, em São Paulo, mais precisamente na Universidade de São Paulo. Não havia encontro de família, almoço ou jantar, quando alguém se queixava do confronto a uma situação difícil, que não lhe dissessem: - “Ah, para resolver isso, só fazendo um curso na USP”. E aquela USP era tão distante para José... Se ele era aquele ponto tolo, como pretender ir à USP e, não indo, como iria suportar as dificuldades? Não tinha jeito. A USP era coisa para um ou outro de seus dois brilhantes irmãos; a ele sobrava talvez a sorte.
E no entanto, paradoxo do destino, José estava na universidade e com sucesso.
Na saída do cinema ele tentou disfarçar suas lágrimas: de raiva pelo esforço sofrido em nome de um ideal e de pena, por autocomiseração.
A hora tardia, do final da sessão, meia-noite, não o impediu de querer revisitar cada instituto, cada sala freqüentada naqueles últimos anos. Ele já fazia planos para no dia seguinte contar a seu analista sua grande descoberta: as razões de seu sofrimento. Queria ir às últimas conseqüências, sentir tudo o que devia sentir, deixar-se invadir pelas memórias afetivas daqueles lugares, às vezes calvários de castigo, às vezes de redenção, sempre religiosos.
Foi difícil entrar no setor de Filosofia tão tarde da noite mas a porta aberta, amavelmente oferecida por um professor notívago, que se retirava, facilitou a empresa. De cada carteira, de cada corredor emanavam as angústias de estar aquém do ideal. Tinha chegado à USP, mas será que a USP era lá?
E do setor de Filosofia, foi ao de Antropologia, em seqüência ao de Sociologia, ao de História... A cada passo mais clara lhe aparecia sua vida, seu percurso, como se diz. De uma certa maneira não era um saber tão movo com o qual se deparava mas nova era a forte convicção da verdade desses fatos. Freud não dizia que o obsessivo recalca o afeto mas não as idéias, diferente da histérica que recalca os dois?
Enfim, fatigado, extenuado, mas feliz pela boa descoberta, foi dormir. Na manhã seguinte, cedo, verificou se não havia se esquecido de nada do ocorrido na madrugada e que iria relatar a seu analista... Quanta expectativa! Chegada a hora, entrou e imediatamente contou sua noite em todos os detalhes. Ao fazê-lo, começou a notar que não era escutado com o interesse que aguardava. - “Será que não estou sendo claro?”, se perguntou, e buscou reforçar a importância do que dizia. O analista, assim terminado o relato, sem nada falar, levanta-se, pondo fim à sessão e lhe dando um novo horário para dali a algumas horas. Reencontrando-se no elevador, entre a sideração, a raiva e a frustração, José se perguntou o que era aquilo.
Horas depois, retomando a sua sessão, precavido, não querendo ser de novo surpreendido, de maneira bem objetiva, começou por perguntar se a sessão anterior tinha sido encerrada porque o analista pensava que assim devia fazer ou porque a sala de espera estava cheia. O analista, laconicamente, responde-lhe: “Porque entendi que deveria interromper”. José tenta então lhe explicar o absurdo sofrido, voltando sobre sua história, agora não mais emocionado mas à maneira de um advogado que exige justiça à dor de seu cliente. E, assim, em poucos minutos, energicamente, retomou e pôs em ordem os pontos capitais de sua reflexão noturna. Recebeu então uma nova resposta de seu analista, uma interpretação: - “Pois é, você arriscava acreditar excessivamente nisto tudo”. A sessão terminou aí e, com ela, uma história.

II

Gostaria de comentar esta passagem de uma análise, em duas vertentes: a do analisando e a do analista, lembrando que o imbricamento sendo tanto, o que será dito para um tem conseqüência para o outro e vice-versa.
Começo então pelo analisando.
Destacaria três momentos distintos na passagem relatada que sintetizaria nessas proposições:
a) Havia um saber, não havia uma verdade
b) Havia um saber, havia uma verdade
c) Não havia um saber, havia uma verdade.

O primeiro momento, “Havia um saber, não havia uma verdade”, corresponde ao fato de que José conhecia suas coordenadas familiares, sabia mas não dava a estas peso de verdade, de importância. E, como já referido, dissociava no recalque obsessivo a ‘idéia’ do ‘afeto’, o que possibilita uma espécie de convivência irresponsável com o sintoma.
O segundo momento, “Havia um saber, havia uma verdade”, corresponde ao da suspensão do recalque secundário: ele, José, se via alienado completamente a uma história. Nota-se um misto de responsabilidade e culpa, onde ele reconhece sua participação, mas culpa o outro por seus tormentos.
Finalmente, no terceiro momento, “Não havia um saber, havia uma verdade”, José fica com uma verdade incompleta, diríamos quanto a sua compreensão, provocada pelo analista: - “Você arriscava acreditar excessivamente nisto tudo”, o que o forçou a ir além do recalque secundário, obrigando-o a fabricar um outro tipo de saber para responder à verdade que lhe tocava.
Podemos ver aí um exemplo do que em 1977 Lacan1 estabelecia como alvo de uma análise: um significante novo. “O que eu sempre enuncio é que a invenção de um significante é alguma coisa diferente da memória (...) Nossos significantes são sempre recebidos. Por que não inventar um significante novo? Um significante, por exemplo,, que não teria, como o real, nenhuma espécie de sentido?”
No caso de José, este vai de sua memória morta a uma memória vivida e, em seguida, a um buraco na memória, o que lhe permite o futuro: o aparecimento de um novo significante.
Em 1908, Freud publica dois textos que têm seu interesse de serem lidos em correspondência: “Romances Familiares” 2 e “Escritores Criativos e Devaneios”3. Freud aí se pergunta por que existem histórias que nos aborrecem enquanto outras, ao contrário, prendem nossa atenção. Seria devido às diferenças dos temas tratados? Haveria alguns mais interessantes que os outros? É o que o bom senso levaria apensar. Mas, ainda uma vez, o bom senso pensa mal, pois Freud descobre, quanto ao tema, que neuróticos e escritores se referem ao mesmo, ou seja, ao que lhes falta, ao que desejam, com a diferença que a maneira de desenvolver uma resposta não é a mesma para cada um deles.
A base do romance familiar do neurótico é, frente à decepção sofrida com a sua família de origem, constituir uma outra mais valiosa, mais adequada aos padrões ideais. No caso de José, ir para a USP.
O escritor criativo, por seu lado, não tem tanta certeza de um ideal. Ele se inventa um lugar e assume a responsabilidade por sua escolha. A particularidade de suas opções permite aos leitores fazerem o mesmo.
Freud destaca a culpa e a vergonha como os fatores que se alteram do neurótico para o escritor criativo: “... a verdadeira satisfação que usufruímos de uma obra literária procede de uma liberação de tensões em nossas mentes. Talvez até grande parte desse efeito seja devida à possibilidade que o escritor nos oferece de, dali em diante, nos deleitarmos com nossos próprios devaneios, sem auto-acusações ou vergonha”.4
Difícil dizer que, à semelhança de um escritor, o analista leve o analisando a se deleitar com seus devaneios, tal como Freud acaba de enunciar. Entretanto eles se aproximam no ponto em que uma análise também modifica as auto-acusações, a culpa e a vergonha. No lugar da culpa sempre referida a um outro, uma análise conduz à responsabilidade sobre seu próprio gozo.
“Coma seu daseiri5, fórmula em que Lacan se expressou a respeito da tarefa do analisando, quereria dizer que nenhuma culpa, arrependimento, castigo ou promessa poderia liberá-lo desta dura obrigação, a de roer o osso de sua existência.
A intervenção do analista, no caso de José, o impulsionou a sair de seu repetitivo romance familiar, desacreditando suas queixas - “Eles me viam como alguém distraído e pouco inteligente” - e também sua solução - “Tinha que ir para a USP”. Não há uma história que explique uma vida, pois a vida excede todas as histórias.


III

Passemos agora ao comentário, vertente do analista. Chocou José ao final da primeira sessão relatada, a pouca, até mesmo nenhuma solidariedade demonstrada pelo analista, face a seu drama. É fato, o analista não é cúmplice da paixão exposta mas, pela sua posição, revela a qualidade, a função de prótese, de obturação, da história contada.
É como se ele ridicularizasse, na acepção de realçar o absurdo, a explicação de um sofrimento. Ele questiona a relação de compromisso estabelecida pelo sintoma neurótico. Para ele, neste sentido, também é válida a descrição que Denis Diderot faz do ator, em seu famoso paradoxo: “É o olho do sábio que capta o ridículo de tantas personagens diversas, que o pinta, e que o faz rir, quer desses importunos originais de que fostes vítima, quer de vós mesmo. É ele quem vos observava e quem traçava a cópia cômica, quer do importuno, quer de vosso suplício”. E ainda: “Mais impressionados (os atores) por nosso ridículo do que tocados por nossos males, de um espírito bastante sereno ante o espetáculo de um acontecimento lastimável, ou ante o relato de uma aventura patética; isolados, vagabundos, à mercê dos grandes; poucos modos, nenhum amigo, quase sem qualquer dessas santas e doces ligações que nos associam às penas e aos prazeres de outrem que partilha dos nossos”6
Realçando o ridículo que existe no envelope choroso de um sofrimento, o analista colabora para que o analisando não se tome por demais a sério. Dissocia dor e relato da dor, provando que freqüentemente sofre-se mais pelo que se conta do que pelo que se sente. Como já sublinhado, a vida excede as dimensões de todas as histórias, sendo o que explica, a meu ver, que as biografias só possam contar a história dos que já morreram. Há sempre um excesso, um ridículo a suportar na vida; o ridículo é o particular que não se encaixa em nenhum universal. São ridículos, por exemplo, os termos de ternura quando ditos em público, os apelidos cúmplices, os carinhos. Aquilo que só serve a um, a dois ou a um pequeno grupo é habitualmente tachado de ridículo.
Evitando o excesso da vida, o sintoma neurótico se oferece como uma roupagem sóbria, ao ridículo, ao singular de um desejo. É o que podemos notar a propósito do que chamamos o recalque secundário; no caso de José, sua infortunada história.
Uma análise deveria levar uma pessoa que a realiza a melhor contar o ridículo de sua vida, tal como o sugere Fernando Pessoa em um poema escrito por seu heterônimo Álvaro de Campos e intitulado: “Todas as Cartas de Amor”7 . Ele diz assim:


Todas as cartas de amor são
Ridículas
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor
Como as outras,
Ridículas.

As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.

Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas

A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.

No começo, ao se deparar com o amor, com o que se diz do amor, as cartas de amor são consideradas pelo poeta como ridículas. Depois, progressivamente, ele se dá conta que são aqueles incapazes de escrevê-las, os que são ridículos. Aí estaria uma metáfora ilustrativa do que quis dizer para uma análise: conseguir, com as palavras para sempre recalcadas, ridículas, escrevê-las em cartas de amor.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

TRANSFORMES e o Grande Outro


Fiquei pensando como o Filme Transformes foi um grande sucesso? Qual o elemento humano que nele foi trabalhado? E comecei a divagar. Veja! Com um transformes na garagem você não gasta com gasolina, ipva, seguro obrigatório, o próprio seguro do carro, nunca vai ser assaltado por marginais no sinaleiro ou em uma distraída entrada de garagem. Além de que em apenas um grito ele estará do seu lado viril e vivaz. Ai de quem querer tirar algo de ti. Pois bem, nesse filme o Grande Outro existe! Penso que esse fato o torne um sonho velado e estimado... Ai aiiii Transformes me mordamm!!!


terça-feira, 3 de novembro de 2009

Análise da Malemolência


As vezes é preciso ficar quieto, sem dizer nada, para ouvir o silencio que as coisas de dentro, enquanto se movimentam, traz.A boca emudecida é um sinal de que muitas vozes falam ao pé do ouvido. A vontade ensandecida de estar em vários lugares, mesmo estando num lugar só, vem acompanhada de muitos rostos.Abre-se e fecha-se guarda-chuvas, tentando se proteger da chuva que não cai. O céu nublado possui movimentos lentos. Nada de gargalhadas. Nada de pandeiros e cavaquinhos. Nada de nudez. Tudo esta coberto.Os ouvidos estão tampados. - Você escolheu assim - . Os olhos estão cerrados. - Você não gosta sentir outras coisas - . Toma banho. Se come em silêncio. Olha a pele pálida. Não se pinta. Se tateia. Percebe que os volumes diminuíram. Se penteia. Se alisa. Se sente. Sente seu cheiro. Se senta e permanece quieta. Lambe as mãos e olhas os pés.Uma bailarina dá saltos e rodopios dentro de si. Dança na ponta dos pés e encena uma peça desconhecida. Quieta e emudecida, você ouve a musica que toca na caixinha. Seus desejos é que te dão corda. É a voz de dentro, quem te conduz. Mostrando seus reflexos de semelhanças. “Sou eu tua guia. Me ouves e se sentiras liberta”.Sua companhia chega. Se senta ao seu lado. Traz consigo o cheiro de banho tomado. Sua barba ainda fina e falhada não consegue esconder suas feições de alegria. Nenhuma palavra. Você o olha. Ele a olha. E vem o riso que nasceu de dentro. Os olhos dele seguem todas as curvas do teu corpo. Seus olhos se fecham para sentir a sombra da sua mão lhe tocar. Ele não a toca. Não pode. Sabe que se isso acontecer tudo se quebra. Não se pode tocar na tela. Deixe que a moldura da insanidade a proteja.Ela ainda dança. Suas sapatilhas são vermelhas. Você abre os olhos, nada a sua volta. Fecha-os e novamente tudo está no seu lugar. Ele ainda ali. Calado e sorrindo. Num instante em que você o fita firmemente e corre os olhos sobre os seus ombros largos, ele parece ler seu pensamento. Se despe devagar fitando-a também.É ai que você sente seu prazer maior: Contempla os desenhos imergidos na pele. Seu braço. Sua pá... As cores se misturaram até que tomaram forma. Jamais sairão dali.As pintas que se espalham pelo seu corpo, mais parecem pingos de tinta do pincel que você usou na ultima aula. O membro rosado. As pernas longas e brancas. Os pés tamanho 44 com dedos alongados. Tudo está descrito. Nada precisa ser dito. Ela o convida a dançar. Ele não sabe. Ela lhe convida para dançar. Você prefere ver e ouvir suas nuanças no palco da natureza humana. Ele se senta e contempla a mensagem dela, que é a tua.Você sente seu assento molhado. Quando te olhas percebes que teu óvulo não foi fecundado. Não se mexe. Deixa que todo o seu retrato seja tomando pelo vermelho sangue. Ele te olha. Engole a saliva e num espasmo lhe beija. O desespero te encontra. A bailarina para de dançar e começa a se desmoronar em pedacinhos.Os pontos de luzes azul-lilás que compunham aquele pedaço de céu se vão. Seus pés começaram a desaparecer. E a figura dele permanece ali.Por um momento você pensou que ele quis acabar com tudo. Mas ele sabia o que se passava contigo. E mansamente fez um sinal de não para seu rosto estupefato. Foi quando sorrindo ele enfiou a mão dentro de você arrancando seu coração. Pela primeira vez você o viu e pode tocar o que lhe pulsara.Com a sombra da mão, ele acariciou o seu coração acelerado. Ergueu sua cabeça e sorrindo colocou o seu coração dentro dele. Com a outra mão nas tuas costas lhe trouxe para perto. Te suspendeu. Colocou seu membro em você. Te encaixou no coração dele e foi então que você se prendeu ali dentro...- Maria Anthônia!? Chegamos. A audiência é as 14 horas. A vitima e a testemunha chegam as 13 hs, então se quiser repassar alguma fala, temos tempo.– E o juri popular, teve alguma mudança? A que horas chegam?– Minha fonte me garantiu que são os mesmos que conferimos. E costumam chegar uma hora antes.– Ótimo! Dá tempo de tranquiliza-los e ambientaliza-los quanto ao tribunal e ao júri.– Cloves?– Sim, estou ouvindo.– Enquanto eu estiver conversando com a testemunha ofereça-lhe café. Vamos colocar bastante adrenalina nisso. Quanto mais emocionada ela impressionará o júri.– Tudo bem.– Trouxe todo o aparato? Digo, o coração, as mãos e os pés?– Consegui tudo numa casa de material hospitalar. Muito semelhantes aos reais. Possuem uma camada gelatinosa que deixam as digitais de qualquer um que os toque. A senhora vai gostar, tenho certeza. É bem melhor do que aquele que temos no escritório.– Ligue para meu medico, preciso falar com ele antes da audiência começar.– Boa tarde, o doutor Melo Neto, por favor? Diga que é da parte da Dra. Maria Anthônia.– Só um momento.– Quem é viva sempre aparece! Diga Maria Anthônia, como vai?– Boa tarde Melo Neto. Vou bem, obrigada. Estou entrando numa audiência agora, seria possível nos encontramos mais tarde, tive um sonho Freudiano?Ele sorriu. E sempre com aquela voz mansa deixou escapulir:– Você e seus sonhos interpretativos. Quando terminar a audiência me ligue, estarei em casa.– Ligo assim que terminar. Um abraço e obrigada.– Cloves, prepare flores vermelhas com espinhos enormes. Vou visitar meu medico esta noite. Também veja um bom vinho cabernet e chocolates alemães. Com toda aquela paciência, ele merece.– Mando entregar, Dr. Maria Anthônia?– Não, eu mesmo levo. Só providencie tudo.– Sabe a que horas ele entrou no consultório hoje? E quantos personagens atendeu?– Ele pegou o plantão as oito da manha e até onde sei atendeu teve dois atendimentos.– Hum, ótimo. Vamos trocar figurinhas, então! Vamos entrar...


Annycole