terça-feira, 22 de dezembro de 2009

DESEJO

Todo desejo carrega consigo o ridículo a bobagem, por ser tão evidente e necessário.
Todo desejo mostra primeiro o não, um semblante
Todo desejo é todo
é molécula
É,
e agora não é mais
Já foi
Todo desejo corre
Desejo brinca
Todo desejo me deixa em branco
pra me colorir
Desejo se entrega
se delata
no abraço
no olhar fotografico
de zum em zum
Na boca que beija
que chinga
que gospe
que ama
Na pele avaliando testuras
Na voz canta sons de palavras
Desejo são moleculas, gãos
se dito
Eterno no sentido de ser Desejo.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

PSICANÁLISE FREUDIANA


PSICANÁLISE FREUDIANA


Agarro a gruta pela goela

com força bruta olho em seus
olhos meus: morte.
Dentes trincados pelos eriçados um gato

que foge pro escuro por mais que se aperte.


(Seu tempo acabou)


Fabio Rocha

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

A falta faz Poesia


A falta faz Poesia

Gloria Leal

Trabalho publicado, originalmente, no Anuário Brasileiro de Psicanálise, 1992/1993, Editora Relume-Dumará.


La raiz del lenguaje es irracional y de carácter mágico. El danés que articulaba el nombre de Thor o el sajón que articulaba el nombre de Thunor no sabia si esas palavras significaban el dios trueno o el estrépito que sucede al relámpago. La poesia quíere volver a esa antigua magia.Sín prefijadas leyes, obra de un modo vacilante y osado, como si caminara en la oscuridad. Ajedrez misterioso la poesia, cuyo tablero y cuyas piezas cambian como en un sueño y sobre el cual me inclinaré después de haber muerto.

Jorge Luis Borges


O anjo Damiel em "Asas do Desejo" de Wim Wenders torna-se humano por amor a uma mulher. No final do filme ele escreve: "Eu sei... agora... o que... nenhum anjo... sabe". O que Damiel sabe, segundo Betty Fuks,2 é que a condição de mortal faz o sujeito buscar a imortalidade no desejo. Por sua vez, a trapezista Marion conquistou a angelitude ao perceber que a vida e os objetos que nela desfilam são apenas transitórios, mas nem por isso menos belos.
Stuart Schneiderman diz que imortal significa simplesmente não mortal e não mortal nem sempre quer dizer vivo para sempre ou eternamente. Não mortal é também uma característica dos mortos. "Só os vivos são mortais. A busca da imortalidade, que geralmente interpretamos como uma busca da vida eterna, um desejo de negar a morte, é apenas outro nome para o desejo da morte."
Desejo de vida. Desejo de morte. Desejo súbito de fazer uma poesia. Tão necessária. Uma que leve embora essa angústia, o soluço engasgado. Uma que traga de volta o sonho. Poesia é tentativa de realização de desejos. Difusos, confusos mesmo, os sentimentos só serão entendidos pelo autor depois. Depois de dar à luz sua poesia.
Ser falante pode ser praga mas ser escrevente é bênção. É um dos possíveis destinos da pulsão. De vida? De morte? O poeta não vive tais dicotomias. Escrever poesia é lidar com o mistério sem o compromisso, aliás impossível, de explicá-lo.
Se queremos explicar o mistério, somos cientistas. Se o respeitamos, mesmo privando da sua identidade, somos poetas e dizemos coisas que não sabíamos saber. Fernando Pessoa4 pergunta:
Tens, como Hamlet, o pavor do desconhecido?Mas o que é conhecido? O que é que tu conheces,Para que chames desconhecido a qualquer coisa em especial?
O mistério, o inusitado, o imprevisível convivem como a poesia. Também na psicanálise. Entre uma linha e outra, nos pedaços em que não se escreve nada, aí ele surge. O poeta e o Inconsciente falam por enigmas.

Mi vida que no entiendo, esta agoniaDe ser enigma, azar, criptografiaY toda la discordia de Babel.

Jorge Luis Borges


Escrever como quem inspira (um verso) e expira (outro verso). Exercício respiratório, associação livre de idéias, catarse, espasmo, orgasmo, seja o que for, faz bem. Apesar do sofrimento de não conseguir dizer o que se deseja. Como sempre. Apesar de o Desejo não se inscrever, realiza-se, por alguns instantes, o desejo de fazer uma poesia. Plantar amores-perfeitos, narcisos e bromélias na borda do vazio existencial.
Lancan5 diz que em toda a forma de sublimação o vazio será determinante e que toda arte se caracteriza por um certo modo de organização em torno desse vazio. Sublinha a importância da Linguagem por lidar com o significante que é "aquilo que, na ordem das artes, confere sua primazia à poesia."
Jorge Luis Borges, no início de "El Golem", usando o termo arquétipo ao invés de significante, concorda com o pensamento lacaniano:
Si (como ei griego afirma em ei Cratilo)El nombre es arquétipo de la cosaEn las letras de rosa está la rosaY todo el Nílo en la palabra Nílo.
A linguagem precede o homem, é condição fundante do humano. Denunciadora e encobridora da Falta, ela nos impele à comunicação e nos remete à solidão. Linguagem é crime e castigo. Cime de Adão e Eva, que comeram o fruto proibido do saber e descobriram a sexualidade. Assim, foram expulsos do paraíso animal e condenados à liberdade. Perdemos o instinto, esse fabuloso programa de comportamentos, e ganhamos a pulsão, essa desconhecida.
Ganhamos a dúvida (quem somos? para que somos? somos?), a possibilidade de morrer (o que será então de mim?) e o desejo de fazer de conta que somos ainda animais naturais e que nossos desejos podem ser satisfeitos. Assim como as necessidades dos animais. Pura ilusão. O desejo do homem é insaciável. A completude tão almejada é impossível. Isto porque o desejo é definido pelo vazio. Um desejo aponta sempre para outro desejo e assim prosseguimos na crença insana de que existe um ou vários objetos adequados que podem ser encontrados no mercado da vida. À ilusão do encontro chamamos felicidade. Essa eternidade que logo termina.
Segundo Lacan o Inconsciente é da ordem do não realizado e é estruturado como uma linguagem. Ambos são regidos pela ordem simbólica. Os símbolos são criados a partir da ausência da coisa. Falamos e cantamos as ausências, o perdido e o nunca encontrado. Do "fort-da" do netinho de Freud até Fernando Pessoa:

E falta sempre uma coisa, um copo, uma brisa, uma frase.E a vida dói quanto mais se goza e quanto mais se inventa.

O ato poético lida com o impossível porque revela algo do Real, que é da ordem do impossível. Mas o poeta insiste, insiste em simbolizar o Real e seus infinitos desdobramentos. Insiste no desejo, ou nele o desejo insiste, de fazer outra poesia. Uma que diga melhor o que se quer dizer e não consegue.

Poesia
Gastei uma hora pensando um versoque a pena não quer escrever. No entanto ele está cá dentroinquieto, vivo.Ele está cá dentroe não quer sair.Mas a poesia deste momentoinunda minha vida inteira.

Carlos Drummond de Andrade

O conteúdo latente do poema, como o do sonho, também é mais rico que o manifesto. O poeta aspira ao poema perfeito porque a vida não é perfeita nem completa e ele se sente completo ao escrever. Mas o poeta escreve sem saber por quê.

Eu canto porque o instante existee a minha vida está completa.Não sou alegre nem sou triste.Sou poeta.

Cecília Meireles

O sentimento poético que vive em todos nós não pode ser transposto para o papel ou para a voz sem perda de substância. Algo se perde na transposição, como o objeto "a". Acontece que poesia se faz com palavras. As idéias e afetos servem como substrato. Há que transpirar o inefável e isto exige suor. Não é só derramar uns tantos sentimentos no papel, achar bonito e atravessar melhor a noite. Para a associação de idéias (livre como nenhuma fala de analisando) tornar-se arte, deverá ser trabalhada. Idéias e afetos são areia e água, argamassa da construção concluída "só depois". Então você acorda e vai ler o lindo poema da véspera. Acha um horror. Fuma dois cigarros em seguida, toma algumas providências caseiro-burocráticas e vai dar mais uma espiada no papel. Lê agora como se fosse de outro e de fato o Inconsciente é o discurso do outro. Resolve que pode melhorar o texto e aí começa a carpintaria.
É um trabalho letra a letra, palavra a palavra, linha a linha. Pouco sobra, quando sobra. Michelangelo divide as artes em "artes de pôr", como a Pintura, e "artes de tirar", como a Escultura. Na poesia ocorrem esses dois movimentos. Para que, além de terapêutica, seja uma boa poesia, é necessário primeiro estender os sentimentos livremente no papel e só depois fazer o corte de palavras. Isto confere intensidade ao texto e arruma seu coração.
A incompletude, a vazio, a angústia, a morte são muito falados na Poesia. O comum dos mortais sofre das mesmas perplexidades dos poetas. Assim sou eu. Assim é você. Monte de linhas embaraçadas, monte de palavras engasgadas, monte de todas as coisas vividas e morridas. No mar dos sentimentos, o poeta pesca suas palavras. O céu é do condor e a poesia, assim como a praça é de todos.
Borges dedica seu livro Fervor de Bueno Aires a quem o ler:

Si las páginas de este livro consienten algun verso felíz, perdóneme el lector la descortesia de haberlo usurpado yo, previamente. Nuestras nadas poco diferen, es trivial y fortuita la circunstancia de que seas tú el lector de estos ejercícios, y yo su redactor.


Recomendo fazer poesia, ou tentar. Cantar os seus exílios: paraíso perdido, mãe, pai, marido que foi embora, cidade natal, infância. Cantar até sentir que não está exilado nem sozinho. Somos parte de tudo e tudo parte de nós. Nada passou. Nada se passou a não sei um arrepio. De vida, de morte. Sossega, criança. Você morreu tantas vezes que já deveria estar acostumada.
A morte é a curva da estrada.Morrer é só não ser visto.
Fernando Pessoa
O poeta russo Sierguei Lessienin suicidou-se num quarto do Hotel Inglaterra, em Leningrado. Antes de morrer escreveu, com o próprio sangue, a última poesia. Seu amigo Maiakóvski, que continuou vivo por mais uns anos, mesmo sabendo que "Nesta vida morrer não é difícil / O difícil é a vida e seu ofício", declarou no poema dedicado ao jovem Lessienin:

Talvez, se houvesse tinta no InglaterraVocê não cortaria os pulsos.

Escrever poesia pode salvar a sua vida. Pelo menos de ser aborrecida, pouco vivida, distraída. Ajuda a conviver com o espanto de estar vivo desconfiando que vai morrer. Também salva a vida dos seus mortos, imortalizando-os. Ou enterrando no papel o que tem ser enterrado. O luto não precisa ser patológico.

Memória

Neste invento contra a morteque é a memóriavocê fica comigofica sempreE quando eu não mais lembraré o sinalde que você foi emboraAfinalmorrer não é assim como se pensaenquanto se pensaMorrer é se perder de sua história.

Gloria Leal

Notas bibliográficas
1 Borges, Jorge L. Obra Poética. Emecé Editores, Buenos Aires, 1977.2 Fuks, B. B. "Asas do desejo, signo do amor", in Anuário Brasileiro de Psicanálise, 1991.3 Schneiderman, Stuart. Jacques Lacan – A morte de um herói intelectual. Zahar, Rio de Janeiro, 1988.4 Pessoa, F. Obra Poética. Nova Aguilar. Rio de Janeiro, 1977.5 Lacan, J. "O Problema da Sublimação" in O Seminário, Livro 7, A Ética da Psicanálise. Zahar, Rio de Janeiro, 1988.6 Drummond, C. D. Poesia Completa e Prosa. Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1977.7 Meireles, C. Obra Poética. Nova Aguilar. Rio de Janeiro, 1977.8 Maiakovski, V. Poemas. Perspectiva. São Paulo, 3a edição, 1985.9 Leal, G. Polietama II. Timbre-Taurus. Rio de Janeiro, 1992.
Sobre a autora:
Gloria Leal é psicanalista, supervisora de Medicina Psicossomática, graduada em Psicologia, URFJ – 1968, e Medicina, FTESM - 1984, e pós-graduada em Psicologia Médica.É diretora do Centro Cultural Campo da Palavra: Artes e Ciências Humanas. Livros publicados: Politeama e Politeama II.Homepage: http://www.campodapalavra.art.br/e-mail: glorialeal@campodapalavra.art.br
Matéria publicada em 01/05/2000 - Edição Número 9

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

A Menina de Fabricio


-Sangra minha boca agora ou te como com minha vulva seca! Foi assim que ela apareceu ali em casa. Eu nem sei como ela entrou. Eu sai do banho e ela estava ali na minha sala. Eu tava com a toalha na mão e Ela vestia uma gravata e um sapato salto alto, eu não me lembro bem a cor, porque estava na penumbra. Não tinha mais nada nela. Tinha na mão uma gilete em forma de faca.
Não havia nada no seu púbis, alem dele mesmo.
Não havia nada nos seus peitos alem dos bicos esguios em minha direção. Eu sabia que era ela. Linda! Vagabunda! Como ela conseguiu entrar? Eu podia reconhecer aqueles olhos esguios que mais pareciam facas afiadas. E aquela boca... Eu sabia, que aqueles lábios finos e vermelhos, foram os mesmos que me tocaram da ultima vez.
Olha Doutor, eu não sei como isso aconteceu!
-Quem começa, você ou eu? Ela me perguntou. E com a gilete fez um corte no braco. E me olhando lambeu-o. Eu fiquei paralisado com isso. Meu membro nesta hora já extremamente arrochado faltava explodir. Sabia Vadia! Ela sabia que eu não resistia a uma gota de sangue escorrendo pelos seus lábios.
Era surreal aquilo. Tao branca e com a boca lambuzada de vermelho. Eu não sabia mais o que era realidade naquilo ali. Caminhou até a mesa. Ela sabia que eu estava paralisado. Eu podia ver bem as curvas daquela bunda branca. Nem grande, nem pequena. Para mim era o suficiente. Não, não, eu nunca gostei de coisas indiscretas. Puxou a cadeira e levantou a perna. Colocou-a sobre a cadeira e com o salto do sapato perfurou a almofada. Eu tremi todo com isso, senti os dedos dos meus pés apertarem o chão.
Nesta hora fez um pequeno corte na perna e com o seu indicador levou ate a boca: Doce, doce! Eu não conseguia me mover, tentava sair dali, dar um passo, mas não conseguia. E mesmo fazendo todo aquele frio eu suava mais do que o saco na praia.
-Tudo o que eu quero voce pode me dar, então, comece!
Foi dizendo isso que ela se sentou na ponta da mesa se encochando. Começou a ziguezaguear nas pernas com aquela gilete e eu vendo tudo aquilo não conseguia me mover. Foi então, que ela veio ate mim, se encostou em mim, e me sujou todo. Pegou no meu membro e passou a gilete nele como se estivesse apresentando-os um ao outro. Eu sabia que ela não faria nada ali. Na verdade eu sentia, só isso. Apertou meu membro e arrancou um pedaço da minha orelha. Eu não gritei. Soltei um grunido somente. Ela sabia que o que fazia era o meu maior prazer. Sorriu de canto. Lambeu minha boca. E me chupou ate que eu caísse no chão. Eu já não sentia mais minhas pernas quando ela colocou seu peito na minha boca.
- Arranca um pedaço de mim, moco!
Eu não podia. Naã conseguia. Estava tremulo e sentia tanto prazer que mal conseguia me mover naquele chão frio.
Ela riu de mim. Toda vez que ela vem ela sempre ri de mim.
Eu não sei o que ela faz mas me paralisa, fico assim, como estou agora. Nervoso. Inquieto por dentro. Com vontade que aquelas visitas não se acabem nunca. Mas ela sempre se vai. E quando volta nunca avisa.
Aquela vagabunda de mulher. Aquela Deusa da minha mais miserável realidade. Se esconde entre as madrugadas frias. Pegou a gilete cortou o mamilo e jogou na minha cara.
-Toma, desgraçadinho! E' isso que você é!
Come isso no seu cafe da manha se conseguir se levantar dai'.
Pegou meu roupão se vestiu e ao sair:
-Nem pense em mudar a fechadura. Sorriu. Eu sei onde você guarda seu carro.Saiu e bem devagar me trancou ali no chão segurando meu...-Ok, Fabrício! Sua hora acabou. Passe ali na recepção e marque hora para semana que vem. E por favor, cuide desse machucado na orelha.


Annycole

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Ridículas Palavras Recalcadas



Jorge Forbes

I

Aquela pena, caindo entre as árvores sobre o rapaz sentado no banco da praça, com cara meio abobalhada, lhe pareceu um lugar comum, um apelo fácil ao sentimento da platéia, onde ele estava. José se arrumou em sua poltrona e se preparou para não gostar do filme. Mas, pouco a pouco, o desinteresse foi se modificando, pois José começou a se reconhecer no personagem, tratado como um tonto por sua família, por seus colegas de colégio e que, no entanto. Desajeitadamente, ia obtendo sucesso na vida, sempre de maneira atravessada. O personagem ganhava corridas porque se punha a correr, era modelo para cantor de rock por sua disritmia, depois herói de guerra por inconseqüência e assim por diante.
O filme que lhe pareceu de início chato e sem interesse foi tomando corpo.
Freud dizia que um sonho parece ao sonhador, em um primeiro momento, dessa forma: chato e desinteressante, e que é só na medida das associações que o afeto e o interesse surgem. Pois assim se deu: terminada a sessão - de cinema - José estava lívido, aquela era a sua história. Que imenso esforço, pensou ele, lhe tinha sido até então imposto para ultrapassar suas deficiências, anunciadas como tais pelos outros.
Na sua casa familiar, em seu pequeno país natal, da América do Sul, o bom sempre estava em outro lugar: no Brasil, em São Paulo, mais precisamente na Universidade de São Paulo. Não havia encontro de família, almoço ou jantar, quando alguém se queixava do confronto a uma situação difícil, que não lhe dissessem: - “Ah, para resolver isso, só fazendo um curso na USP”. E aquela USP era tão distante para José... Se ele era aquele ponto tolo, como pretender ir à USP e, não indo, como iria suportar as dificuldades? Não tinha jeito. A USP era coisa para um ou outro de seus dois brilhantes irmãos; a ele sobrava talvez a sorte.
E no entanto, paradoxo do destino, José estava na universidade e com sucesso.
Na saída do cinema ele tentou disfarçar suas lágrimas: de raiva pelo esforço sofrido em nome de um ideal e de pena, por autocomiseração.
A hora tardia, do final da sessão, meia-noite, não o impediu de querer revisitar cada instituto, cada sala freqüentada naqueles últimos anos. Ele já fazia planos para no dia seguinte contar a seu analista sua grande descoberta: as razões de seu sofrimento. Queria ir às últimas conseqüências, sentir tudo o que devia sentir, deixar-se invadir pelas memórias afetivas daqueles lugares, às vezes calvários de castigo, às vezes de redenção, sempre religiosos.
Foi difícil entrar no setor de Filosofia tão tarde da noite mas a porta aberta, amavelmente oferecida por um professor notívago, que se retirava, facilitou a empresa. De cada carteira, de cada corredor emanavam as angústias de estar aquém do ideal. Tinha chegado à USP, mas será que a USP era lá?
E do setor de Filosofia, foi ao de Antropologia, em seqüência ao de Sociologia, ao de História... A cada passo mais clara lhe aparecia sua vida, seu percurso, como se diz. De uma certa maneira não era um saber tão movo com o qual se deparava mas nova era a forte convicção da verdade desses fatos. Freud não dizia que o obsessivo recalca o afeto mas não as idéias, diferente da histérica que recalca os dois?
Enfim, fatigado, extenuado, mas feliz pela boa descoberta, foi dormir. Na manhã seguinte, cedo, verificou se não havia se esquecido de nada do ocorrido na madrugada e que iria relatar a seu analista... Quanta expectativa! Chegada a hora, entrou e imediatamente contou sua noite em todos os detalhes. Ao fazê-lo, começou a notar que não era escutado com o interesse que aguardava. - “Será que não estou sendo claro?”, se perguntou, e buscou reforçar a importância do que dizia. O analista, assim terminado o relato, sem nada falar, levanta-se, pondo fim à sessão e lhe dando um novo horário para dali a algumas horas. Reencontrando-se no elevador, entre a sideração, a raiva e a frustração, José se perguntou o que era aquilo.
Horas depois, retomando a sua sessão, precavido, não querendo ser de novo surpreendido, de maneira bem objetiva, começou por perguntar se a sessão anterior tinha sido encerrada porque o analista pensava que assim devia fazer ou porque a sala de espera estava cheia. O analista, laconicamente, responde-lhe: “Porque entendi que deveria interromper”. José tenta então lhe explicar o absurdo sofrido, voltando sobre sua história, agora não mais emocionado mas à maneira de um advogado que exige justiça à dor de seu cliente. E, assim, em poucos minutos, energicamente, retomou e pôs em ordem os pontos capitais de sua reflexão noturna. Recebeu então uma nova resposta de seu analista, uma interpretação: - “Pois é, você arriscava acreditar excessivamente nisto tudo”. A sessão terminou aí e, com ela, uma história.

II

Gostaria de comentar esta passagem de uma análise, em duas vertentes: a do analisando e a do analista, lembrando que o imbricamento sendo tanto, o que será dito para um tem conseqüência para o outro e vice-versa.
Começo então pelo analisando.
Destacaria três momentos distintos na passagem relatada que sintetizaria nessas proposições:
a) Havia um saber, não havia uma verdade
b) Havia um saber, havia uma verdade
c) Não havia um saber, havia uma verdade.

O primeiro momento, “Havia um saber, não havia uma verdade”, corresponde ao fato de que José conhecia suas coordenadas familiares, sabia mas não dava a estas peso de verdade, de importância. E, como já referido, dissociava no recalque obsessivo a ‘idéia’ do ‘afeto’, o que possibilita uma espécie de convivência irresponsável com o sintoma.
O segundo momento, “Havia um saber, havia uma verdade”, corresponde ao da suspensão do recalque secundário: ele, José, se via alienado completamente a uma história. Nota-se um misto de responsabilidade e culpa, onde ele reconhece sua participação, mas culpa o outro por seus tormentos.
Finalmente, no terceiro momento, “Não havia um saber, havia uma verdade”, José fica com uma verdade incompleta, diríamos quanto a sua compreensão, provocada pelo analista: - “Você arriscava acreditar excessivamente nisto tudo”, o que o forçou a ir além do recalque secundário, obrigando-o a fabricar um outro tipo de saber para responder à verdade que lhe tocava.
Podemos ver aí um exemplo do que em 1977 Lacan1 estabelecia como alvo de uma análise: um significante novo. “O que eu sempre enuncio é que a invenção de um significante é alguma coisa diferente da memória (...) Nossos significantes são sempre recebidos. Por que não inventar um significante novo? Um significante, por exemplo,, que não teria, como o real, nenhuma espécie de sentido?”
No caso de José, este vai de sua memória morta a uma memória vivida e, em seguida, a um buraco na memória, o que lhe permite o futuro: o aparecimento de um novo significante.
Em 1908, Freud publica dois textos que têm seu interesse de serem lidos em correspondência: “Romances Familiares” 2 e “Escritores Criativos e Devaneios”3. Freud aí se pergunta por que existem histórias que nos aborrecem enquanto outras, ao contrário, prendem nossa atenção. Seria devido às diferenças dos temas tratados? Haveria alguns mais interessantes que os outros? É o que o bom senso levaria apensar. Mas, ainda uma vez, o bom senso pensa mal, pois Freud descobre, quanto ao tema, que neuróticos e escritores se referem ao mesmo, ou seja, ao que lhes falta, ao que desejam, com a diferença que a maneira de desenvolver uma resposta não é a mesma para cada um deles.
A base do romance familiar do neurótico é, frente à decepção sofrida com a sua família de origem, constituir uma outra mais valiosa, mais adequada aos padrões ideais. No caso de José, ir para a USP.
O escritor criativo, por seu lado, não tem tanta certeza de um ideal. Ele se inventa um lugar e assume a responsabilidade por sua escolha. A particularidade de suas opções permite aos leitores fazerem o mesmo.
Freud destaca a culpa e a vergonha como os fatores que se alteram do neurótico para o escritor criativo: “... a verdadeira satisfação que usufruímos de uma obra literária procede de uma liberação de tensões em nossas mentes. Talvez até grande parte desse efeito seja devida à possibilidade que o escritor nos oferece de, dali em diante, nos deleitarmos com nossos próprios devaneios, sem auto-acusações ou vergonha”.4
Difícil dizer que, à semelhança de um escritor, o analista leve o analisando a se deleitar com seus devaneios, tal como Freud acaba de enunciar. Entretanto eles se aproximam no ponto em que uma análise também modifica as auto-acusações, a culpa e a vergonha. No lugar da culpa sempre referida a um outro, uma análise conduz à responsabilidade sobre seu próprio gozo.
“Coma seu daseiri5, fórmula em que Lacan se expressou a respeito da tarefa do analisando, quereria dizer que nenhuma culpa, arrependimento, castigo ou promessa poderia liberá-lo desta dura obrigação, a de roer o osso de sua existência.
A intervenção do analista, no caso de José, o impulsionou a sair de seu repetitivo romance familiar, desacreditando suas queixas - “Eles me viam como alguém distraído e pouco inteligente” - e também sua solução - “Tinha que ir para a USP”. Não há uma história que explique uma vida, pois a vida excede todas as histórias.


III

Passemos agora ao comentário, vertente do analista. Chocou José ao final da primeira sessão relatada, a pouca, até mesmo nenhuma solidariedade demonstrada pelo analista, face a seu drama. É fato, o analista não é cúmplice da paixão exposta mas, pela sua posição, revela a qualidade, a função de prótese, de obturação, da história contada.
É como se ele ridicularizasse, na acepção de realçar o absurdo, a explicação de um sofrimento. Ele questiona a relação de compromisso estabelecida pelo sintoma neurótico. Para ele, neste sentido, também é válida a descrição que Denis Diderot faz do ator, em seu famoso paradoxo: “É o olho do sábio que capta o ridículo de tantas personagens diversas, que o pinta, e que o faz rir, quer desses importunos originais de que fostes vítima, quer de vós mesmo. É ele quem vos observava e quem traçava a cópia cômica, quer do importuno, quer de vosso suplício”. E ainda: “Mais impressionados (os atores) por nosso ridículo do que tocados por nossos males, de um espírito bastante sereno ante o espetáculo de um acontecimento lastimável, ou ante o relato de uma aventura patética; isolados, vagabundos, à mercê dos grandes; poucos modos, nenhum amigo, quase sem qualquer dessas santas e doces ligações que nos associam às penas e aos prazeres de outrem que partilha dos nossos”6
Realçando o ridículo que existe no envelope choroso de um sofrimento, o analista colabora para que o analisando não se tome por demais a sério. Dissocia dor e relato da dor, provando que freqüentemente sofre-se mais pelo que se conta do que pelo que se sente. Como já sublinhado, a vida excede as dimensões de todas as histórias, sendo o que explica, a meu ver, que as biografias só possam contar a história dos que já morreram. Há sempre um excesso, um ridículo a suportar na vida; o ridículo é o particular que não se encaixa em nenhum universal. São ridículos, por exemplo, os termos de ternura quando ditos em público, os apelidos cúmplices, os carinhos. Aquilo que só serve a um, a dois ou a um pequeno grupo é habitualmente tachado de ridículo.
Evitando o excesso da vida, o sintoma neurótico se oferece como uma roupagem sóbria, ao ridículo, ao singular de um desejo. É o que podemos notar a propósito do que chamamos o recalque secundário; no caso de José, sua infortunada história.
Uma análise deveria levar uma pessoa que a realiza a melhor contar o ridículo de sua vida, tal como o sugere Fernando Pessoa em um poema escrito por seu heterônimo Álvaro de Campos e intitulado: “Todas as Cartas de Amor”7 . Ele diz assim:


Todas as cartas de amor são
Ridículas
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor
Como as outras,
Ridículas.

As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.

Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas

A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.

No começo, ao se deparar com o amor, com o que se diz do amor, as cartas de amor são consideradas pelo poeta como ridículas. Depois, progressivamente, ele se dá conta que são aqueles incapazes de escrevê-las, os que são ridículos. Aí estaria uma metáfora ilustrativa do que quis dizer para uma análise: conseguir, com as palavras para sempre recalcadas, ridículas, escrevê-las em cartas de amor.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

TRANSFORMES e o Grande Outro


Fiquei pensando como o Filme Transformes foi um grande sucesso? Qual o elemento humano que nele foi trabalhado? E comecei a divagar. Veja! Com um transformes na garagem você não gasta com gasolina, ipva, seguro obrigatório, o próprio seguro do carro, nunca vai ser assaltado por marginais no sinaleiro ou em uma distraída entrada de garagem. Além de que em apenas um grito ele estará do seu lado viril e vivaz. Ai de quem querer tirar algo de ti. Pois bem, nesse filme o Grande Outro existe! Penso que esse fato o torne um sonho velado e estimado... Ai aiiii Transformes me mordamm!!!


terça-feira, 3 de novembro de 2009

Análise da Malemolência


As vezes é preciso ficar quieto, sem dizer nada, para ouvir o silencio que as coisas de dentro, enquanto se movimentam, traz.A boca emudecida é um sinal de que muitas vozes falam ao pé do ouvido. A vontade ensandecida de estar em vários lugares, mesmo estando num lugar só, vem acompanhada de muitos rostos.Abre-se e fecha-se guarda-chuvas, tentando se proteger da chuva que não cai. O céu nublado possui movimentos lentos. Nada de gargalhadas. Nada de pandeiros e cavaquinhos. Nada de nudez. Tudo esta coberto.Os ouvidos estão tampados. - Você escolheu assim - . Os olhos estão cerrados. - Você não gosta sentir outras coisas - . Toma banho. Se come em silêncio. Olha a pele pálida. Não se pinta. Se tateia. Percebe que os volumes diminuíram. Se penteia. Se alisa. Se sente. Sente seu cheiro. Se senta e permanece quieta. Lambe as mãos e olhas os pés.Uma bailarina dá saltos e rodopios dentro de si. Dança na ponta dos pés e encena uma peça desconhecida. Quieta e emudecida, você ouve a musica que toca na caixinha. Seus desejos é que te dão corda. É a voz de dentro, quem te conduz. Mostrando seus reflexos de semelhanças. “Sou eu tua guia. Me ouves e se sentiras liberta”.Sua companhia chega. Se senta ao seu lado. Traz consigo o cheiro de banho tomado. Sua barba ainda fina e falhada não consegue esconder suas feições de alegria. Nenhuma palavra. Você o olha. Ele a olha. E vem o riso que nasceu de dentro. Os olhos dele seguem todas as curvas do teu corpo. Seus olhos se fecham para sentir a sombra da sua mão lhe tocar. Ele não a toca. Não pode. Sabe que se isso acontecer tudo se quebra. Não se pode tocar na tela. Deixe que a moldura da insanidade a proteja.Ela ainda dança. Suas sapatilhas são vermelhas. Você abre os olhos, nada a sua volta. Fecha-os e novamente tudo está no seu lugar. Ele ainda ali. Calado e sorrindo. Num instante em que você o fita firmemente e corre os olhos sobre os seus ombros largos, ele parece ler seu pensamento. Se despe devagar fitando-a também.É ai que você sente seu prazer maior: Contempla os desenhos imergidos na pele. Seu braço. Sua pá... As cores se misturaram até que tomaram forma. Jamais sairão dali.As pintas que se espalham pelo seu corpo, mais parecem pingos de tinta do pincel que você usou na ultima aula. O membro rosado. As pernas longas e brancas. Os pés tamanho 44 com dedos alongados. Tudo está descrito. Nada precisa ser dito. Ela o convida a dançar. Ele não sabe. Ela lhe convida para dançar. Você prefere ver e ouvir suas nuanças no palco da natureza humana. Ele se senta e contempla a mensagem dela, que é a tua.Você sente seu assento molhado. Quando te olhas percebes que teu óvulo não foi fecundado. Não se mexe. Deixa que todo o seu retrato seja tomando pelo vermelho sangue. Ele te olha. Engole a saliva e num espasmo lhe beija. O desespero te encontra. A bailarina para de dançar e começa a se desmoronar em pedacinhos.Os pontos de luzes azul-lilás que compunham aquele pedaço de céu se vão. Seus pés começaram a desaparecer. E a figura dele permanece ali.Por um momento você pensou que ele quis acabar com tudo. Mas ele sabia o que se passava contigo. E mansamente fez um sinal de não para seu rosto estupefato. Foi quando sorrindo ele enfiou a mão dentro de você arrancando seu coração. Pela primeira vez você o viu e pode tocar o que lhe pulsara.Com a sombra da mão, ele acariciou o seu coração acelerado. Ergueu sua cabeça e sorrindo colocou o seu coração dentro dele. Com a outra mão nas tuas costas lhe trouxe para perto. Te suspendeu. Colocou seu membro em você. Te encaixou no coração dele e foi então que você se prendeu ali dentro...- Maria Anthônia!? Chegamos. A audiência é as 14 horas. A vitima e a testemunha chegam as 13 hs, então se quiser repassar alguma fala, temos tempo.– E o juri popular, teve alguma mudança? A que horas chegam?– Minha fonte me garantiu que são os mesmos que conferimos. E costumam chegar uma hora antes.– Ótimo! Dá tempo de tranquiliza-los e ambientaliza-los quanto ao tribunal e ao júri.– Cloves?– Sim, estou ouvindo.– Enquanto eu estiver conversando com a testemunha ofereça-lhe café. Vamos colocar bastante adrenalina nisso. Quanto mais emocionada ela impressionará o júri.– Tudo bem.– Trouxe todo o aparato? Digo, o coração, as mãos e os pés?– Consegui tudo numa casa de material hospitalar. Muito semelhantes aos reais. Possuem uma camada gelatinosa que deixam as digitais de qualquer um que os toque. A senhora vai gostar, tenho certeza. É bem melhor do que aquele que temos no escritório.– Ligue para meu medico, preciso falar com ele antes da audiência começar.– Boa tarde, o doutor Melo Neto, por favor? Diga que é da parte da Dra. Maria Anthônia.– Só um momento.– Quem é viva sempre aparece! Diga Maria Anthônia, como vai?– Boa tarde Melo Neto. Vou bem, obrigada. Estou entrando numa audiência agora, seria possível nos encontramos mais tarde, tive um sonho Freudiano?Ele sorriu. E sempre com aquela voz mansa deixou escapulir:– Você e seus sonhos interpretativos. Quando terminar a audiência me ligue, estarei em casa.– Ligo assim que terminar. Um abraço e obrigada.– Cloves, prepare flores vermelhas com espinhos enormes. Vou visitar meu medico esta noite. Também veja um bom vinho cabernet e chocolates alemães. Com toda aquela paciência, ele merece.– Mando entregar, Dr. Maria Anthônia?– Não, eu mesmo levo. Só providencie tudo.– Sabe a que horas ele entrou no consultório hoje? E quantos personagens atendeu?– Ele pegou o plantão as oito da manha e até onde sei atendeu teve dois atendimentos.– Hum, ótimo. Vamos trocar figurinhas, então! Vamos entrar...


Annycole

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

HÉLIO PELLEGRINO, psicanalista e poeta

Hélio Pellegrino, psicanalista, escritor e poeta, em entrevista a Clarice Lispector, comenta sobre a sua profissão:

“A psicanálise é, para mim, a ciência da libertação humana. Quem fala em liberdade humana fala sempre em comunicação e encontro. A psicanálise é, portanto, a ciência da comunicação e do encontro. O trabalho psicanalítico visa a construção de um encontro entre duas liberdades. Isto significa que a psicanálise visa o encontro entre duas pessoas, já que o centro da pessoa é a liberdade. Não há liberdade sem abertura ao Outro, sem consentimento na existência do Outro como tal e enquanto tal. Os distúrbios emocionais podem ser conceituados como limitações estruturais dessa abertura, implicando uma perda em disponibilidade com respeito ao Outro. Se minhas ansiedade básicas exigem de mim que faça do Outro um instumento do meu esquema de segurança, já não posso aceitar o Outro em sua essência de ser-outro. Vou invent´-lo à imagem e semelhança de meus temores, torno-me o eixo da referência ao qual o Outro deve referir-se e submeter-se. A psicanálise, sendo um longo convívio humano antiautoritário, é um chamamento à liberdade e à originalidade do paciente e do analista, para que ambos assumam a alegria da comunicação autêntica”.

Clarice: Hélio, diga-me agora, qual a coisa mais importante do mundo?
Hélio: A coisa mais importante do mundo é a possibilidade de ser-com-o-outro, na calma, cálida e intensa mutualidade do amor. O Outro é o que importa, antes e acima de tudo. Por mediação dele, na medida em que recebo sua graça, conquisto para mim a graça de existir. É esta a fonte da verdadeira generosidade e do autêntico entusiasmo – Deus comigo. O amor ao Outro me leva à intuição do todo e me comple à luta pela justiça e pela trnsformação do mundo.


(In: Antonia Pellegrino (Org). Lucidez embriagada. São Paulo: Planeta, 2004.

Hélio Pellegrino, poeta:

O ÁUGURE

Sou um prisma às avessas
as cores em mim se confundem
sou um tapete de ecos
uma cachoeira de gritos
uma cordoalha de muitos tempos

A esfera de lantejoulas
- passado presente futuro -
roda refletindo mil sóis

Sou essa colméia de incêndios
essa assembléia de sinais
esse rumor insone

Rio de Janeiro, 26 / 2 / 1980



O poema faz parte do livro Minérios domados, organizado por Humberto Werneck, Editora Rocco, Rio de Janeiro, 1993.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

A mesma coisa cem mil vezes dita



Fere de leve a frase...

E esquece...

Nada

Convém que se repita...

Só em linguagem amorosa agrada

A mesma coisa cem mil vezes dita.




Mario Quintana

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

O Corvo, o Analista e a Interpretação Part III

O ANALISTA E O CORVO
O corvo coloca em evidência, devido à sua inserção ambígua no campo da fala, a materialidade de seus ditos. Infelizmente (para o analisante) o analista não é um corvo, seus enunciados se dão assim mais "naturalmente" carregados de sentido. Torna-se talvez necessário jogar mais com a homofonia, visando a suspender a significação. O corvo nos mostra entretanto que o lugar de onde se enuncia a interpretação é tanto ou mais fundamental que os meios formais utilizados na sua construção. Com efeito, ele não precisa produzir uma palavra cheia a partir de um material fônico ou ortográfico equívoco. O efeito interpretativo se dá a partir de uma palavra corrente da língua que adquire uma tonalidade ambígua em função do lugar de onde ela foi enunciada. É por isto que o silêncio ou o ato de escansão da sessão da parte do analista têm valor de interpretação. Tratam-se de momentos que podem amplificar ao máximo a suspensão da significação, os quais só têm efeito porque se apóiam em uma lógica própria ao inconsciente que faz com que a presença do analista torne seus silêncios eloqüentes e suas falas literais. São maneiras de se assemelhar ao corvo que não nos liberam porém do uso de palavras. Pelo contrário, estas ações só terão um alcance interpretativo na medida em que elas tenham um supporte significante e alojem-se numa rede de significações.Parece claro então que para que haja interpretação é necessário que um dizer apoiado no sentido seja proferido e que este dizer se enuncie a partir de uma posição en consonância com a lógica do inconsciente (incluindo o que esta lógica tem de temporal). Somente assim o real da presença do analista poderá irromper na análise. A interpretação poderá assim através da sua materialidade fisgar o analisante conduzindo-o ao limiar do sentido. Encontramos então de um lado a ambigüidade significante, formal, e do outro o ser do analista que a constitui enunciando-a. Temos assim dois aspectos constitutivos da interpretação. Se por um lado ela remaneja os significantes mestres da história do analisante, por outro captura a pulsão na transferência. São duas vertentes indissociáveis que só se concebem a partir do corte interpretativo reproduzindo "aquilo pelo qual se unem fortemente o som e o sentido".Ressaltar uma posição subjetiva em consonância com a lógica do inconsciente remete-nos ao "x" do desejo do analista. Este desejo pode ser concebido como aquilo que permite ao analista falar do lugar do corvo (onde podem existir palavras mas onde não existe fala) aceitando a dessubjetivação que isto implica. Este porém, não deve ser concebido como o lugar de uma verdade dessubjetivada, a não ser que a situemos no campo do gozo. Com efeito, trata-se menos de fazer o Outro falar, entregando ao sujeito uma verdade que lhe preexiste, que de fazer ressoar a fala "como tal" ou seja "sem a intermediação do Outro" .Este pode ser um outro ângulo para se abordar a dinâmica da transferência. Ele nos permite uma melhor compreensão do que parecia constituir um paradoxo, isto é, a idéia de que a interpretação instaure a transferência e, ao mesmo tempo, que a interpretação não tenha sentido fora da transferência. Basta supor que o desejo do analista preexiste à análise, dando origem à interpretação e à transferência. É o que se passa em nosso poema pois o neófito é empurrado para dentro da relação transferencial pela palavra interpretativa do corvo. Seria até mesmo possível estabelecer uma progressão lógica das relações entre o neófito e a ave: da imagem do corvo como matriz inicial à fala interpretativa deste (com as modificações subjetivas que ela comporta), remetendo o neófito à causa de seu desejo.A ambigüidade significante inscreve-se assim nas significações do analisante fisgando-o e conduzindo-o ao limite, ao horizonte do ser. O gralhar do corvo corresponde à resposta que ele recebe do Outro e à voz que o arranca de suas determinações. O percurso de uma análise pode ser concebido então como uma progressão na direção de um esgotamento das significações do sujeito (de seus significantes fundamentais), no qual a fala interpretativa aumenta progressivamente a clivagem entre o sujeito e seus significantes, separando-o desta cadeia até que eles apareçam em todo seu peso de gozo. O sujeito, visando o objeto e aferrado ao ser, pode neste momento se dar conta de seus grilhões significantes e ao mesmo tempo de sua abertura à contingência radical do real.

NOTAS
LACAN, J. Cf. ainda: "só a poesia permite a intepretação" ou ainda "é porque a interpretação toca o real que a verdade se especifica de ser poética". Estas passagens se encontram na aula de 19/4/77 que concentra junto com a de 15/3/77 as refererências que citaremos a seguir. Cf. "Vers un significante nouveau" in: Ornicar?, 17/18, p.15-16.POE, E. A. "The Raven". Citamos aqui a tradução em português de Fernando Pessoa.POE, "La genèse du poème" in: POE, E. A. Edgar Allan Poe: contes, essais, poèmes. Collection Bouquins, ED. Robert Lafont, Paris, 1989..Mot plein no original. O termo francês plein remete em português a dois significantes: "cheio" e "pleno". Optamos pelo primeiro, devido ao caráter concreto que Lacan lhe confere aqui, não mais relacionado à problemática do sujeito, como na concepção da fala plena (parole pleine) de seus primeiros seminários. Esta distinção fica ainda mais clara ao se observar que neste ponto ele utiliza mot e não parole, indicando não se tratar de fala mas de palavra, reforçando seu sentido material.Cf. "Aquilo que enunciamos sempre, poque é a lei do discurso, é isso mesmo que deveríamos superar". Ibid. Não poderemos retomar em detalhe a distinção entre palavra vazia e palavra cheia que são intrinsecamente ligadas à fala vazia e fala plena. Estas noções foram trabalhadas de maneira aprofundada por Pierre Bruno em seu seminário de DEA do Departamento de Psicanálise de Paris VIII de 93-94 (inédito). Boa parte das reflexões que apresento aqui foram possíveis graças a este seminário das quais já pude dar uma noção antes: Cf. VIEIRA, M. A. "L'inteprétation, l'équivoque et la poésie" in: La letre mensuelle n° 139. Cf. Também BRUNO, P. "Un sésame de oui" in: La lettre mensuelle n° 136.Este termo em francês (équivoque) tem um sentido bem mais próximo da ambigüidade e da suspensão da significação que em português no qual é muito freqüentemente assimilado à "erro" ou "engano". Seu sentido original em nossa língua entretanto é próximo ao do francês.Na aula de 19 de abril deste seminário, Lacan nos proporá uma experiência topológica com o toro entrelaçado (retomada e comentada por Pierre Bruno). Ele demonstra através de um objeto constituído a partir do toro e composto de vários anéis articulados que reproduzem a articulação das palavras, que o próprio da poesia é a articulação não de uma palavra vazia a uma outra (fala vazia) nem de uma palavra cheia a uma outra (fala plena), mas de uma palavra cheia a uma palavra vazia. Cf. por exemplo: "A psicanálise [assim como a poesia] pode ser uma picaretagem, mas não como as outras. É uma picaretagem que vem a calhar com aquilo que é o significante" ou ainda: "Tudo que se diz é uma picaretagem (...) o que se diz do inconsciente participa do equívoco" LACAN, J. Ibid.Optei por "lacuna" ao invés de "buraco", embora este último termo correspondesse à tradução mais literal de trou, termo utilizado por Lacan nesta passagem, porque este tem em francês um sentido bem menos concreto que seu equivalente em português.JAKOBSON, R. Six leçons sur le son et le sens, Paris, Minuit, 1976. pp.21-23.ECO, U. "De Aristote à Poe" in: Nos grecs et leurs modernes, Paris, Seuil, 1992.O próprio Edgar Allan Poe afirma ter escolhido esta palavra pala sua "faculdade onomatopeica", virtualmente encerrada em seus sons. Além disso a escolha do corvo se justifica também a partir de seu estatuto ambíguo quanto à fala: entre homen e animal, o papagaio foi descartado pois anularia todo o efeito trágico. Cf. "La genèse du poème" art.cit .Cf. e Jakobson op. Cit. SOLER, C. "Sur l'interprétation" in: La letre mensuelle n° .Em sua tradução Fernando Pessoa, descarta este nome, fundamental no texto original e que é mantido em sua tradução francesa, seja a de Baudelaire seja a de Mallarmé.Cf. LACAN, J. Le séminaire Livre XVII pp. 39-40.MILLER, J.A. "Silet" (seminário inédito), aula de 18/1/1995.

*Poema O Corvo de Edgar Allan Poe

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

O Corvo, o Analista e a Interpretação Part II.

O EQUIVOCO

Partiremos do seguinte pressuposto: o lugar de honra dado por Lacan neste momento de seu ensino à poesia en detrimento da fala plena liga-se à estrutura singular do que é por ele designado como o "tour de force" do poeta que consiste na articulação de uma palavra vazia a uma palavra cheia. O estatuto privilegiado desta articulação específica, enfatizado por Pierre Bruno , é o que permite à poesia dar um lugar ao real apesar de sua inserção estrutural no terreno da picaretagem . Note-se que ao descrever este tipo de articulação não fazemos mais do que delimitar a estrutura geral de uma afirmação equívoca do ponto de vista formal. A ambigüidade se instaura com efeito a partir de uma torção sobre aquilo que na língua é, segundo Lacan, "amadurecimento de algo que se cristaliza com o uso" como por exemplo as significações do dicionário. Estas são deslocadas por um novo sentido constituindo uma palavra com duplo sentido. É por esta razão que ele afirma em seguida que a atividade poética nasce de uma violência à língua. Isto equivale a dizer que só existe ambigüidade e duplo sentido à partir de uma torção exercida sobre o tesouro de significações da língua. Sua instalação depende de uma palavra com um único sentido precedendo a palavra com duplo sentido. Esta só se constitui porque apóia-se nesta palavra tida por unívoca que é por vezes apenas implícita. Introduz-se então uma questão fundamental: como diferenciar a interpretação equívoca de uma proposição equívoca qualquer? Esta questão se desloca imediatamente para um nível "técnico" transformando-se em: se o equívoco interpretativo tem um estatuto específico do ponto de vista formal, como produzi-lo?
A ênfase dada por Lacan neste seminário, não tanto na palavra vazia ou na palavra cheia mas na articulação destas como instrumento do efeito poético, nos indica que é menos a palavra cheia que o efeito desta mudança de registro (ou seja a passagem da significação ao duplo sentido) que deve interessar-nos aqui. Eis então outra indicação de Lacan a este respeito que me parece fundamental: "a metáfora e a metonímia só tem alcance interpretativo na medida em que elas são capazes de funcionar como outra coisa. E esta outra coisa da qual elas exercem a função é exatamente aquilo pelo qual se unem fortemente o som e o sentido". Trata-se de uma referência ao mesmo tempo clara e enigmática. O texto é simples, lê-se facilmente o que é dito, mas desvela-se uma "outra coisa" e uma "outra função" que parecem nos escapar.
Esta passagem, ao menos em sua primeira metade, esclarece-se a partir do que Lacan nos diz a seguir: "a poesia é efeito de sentido e também efeito de lacuna" Compreendemos então que trata-se primeiramente de lembrar que cada criação de sentido é acompanhada por um tempo de non-sens anterior logicamente à instalação do novo sentido. Este momento lacunar, que Lacan designa por vezes como "efeito de sentido" (real) opondo-o ao "sentido" (imaginário), liga-se àquilo que funda a interpretação. Ele se dá a partir da abertura do intervalo S1-S2 por ação de uma articulação significante singular que suspende por um instante a significação. Não se trata de um intervalo real mas sim virtual, que se realiza neste instante de horror suturado em seguida por um sentido novo.
A palavra cheia se constitui assim a partir do cristal da língua, instalando-se com o novo sentido o qual efetua uma verdadeira Aufhebung do sentido esperado, conservando-o e anulando-o ao mesmo tempo. No instante do non-sens, neste buraco, jaz a possibilidade de que em seguida se estabeleça um efeito de sentido inédito: um acontecimento que não responda à demanda com um sentido a mais (que não será nunca o certo, o exato) mas com outra coisa, um "extra". Em outras palavras, a interpretação apóia-se nesta propriedade da ambigüidade significante para introduzir um "mais-de-sentido", o qual, devido à sua inserção no limite da significação, passa de um "sentido-a-mais" a um "a-mais-do-sentido".
A segunda parte da passagem que examinamos aqui interessa-nos especialmente porque parece-nos indicar os meios pelos quais podemos chegar a este efeito. Lacan revela que o equívoco interpretativo se funda na função daquilo que une fortemente o sentido e o som. Entretanto, ainda não saímos totalmente da obscuridade. Com efeito, como tratar esta outra coisa que liga som e sentido e que dá um alcance interpretativo à ambigüidade?
Marco André Vieira

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

O Corvo, o Analista e a Interpretação Part. I


A poesia sempre foi vista com bons olhos por Lacan, especialmente em seus últimos seminários onde é associada explicitamente à interpretação. No L'insu que sait... por exemplo ele afirma que devemos nos inspirar da poesia para intervir chegando a lamentar-se por não ser poetabastado (pouâtassez) . A poesia realiza o que na interpretação deve-se buscar: suspender as significações imaginárias evitando a armadilha do sentido. Para tentar situar o modo como Lacan circunscreve este efeito poético, examinarei algumas de suas indicações neste seminário utilizando O Corvo de Edgar Allan Poe como ponto de apoio. Uma poesia que explora o non-sens - como é o caso da tradição poética oriental na qual se insere François Cheng citado por Lacan neste seminário - forneceria provavelmente uma ajuda mais direta em se tratando de delimitar a inserção do ato poético num para-além do sentido. Parece-me entretanto que podemos fazê-lo de modo bem mais eloqüente tomando como ponto de partida uma poesia que recuse tal concepção da ação do poeta, como no caso da de Poe. Este concebe a poesia unicamente no terreno do sentido, constituída a partir de uma ação racional e inteiramente planejada, sem resto - posição reivindicada explicitamente a propósito do corvo .Tomemos inicialmente a oposição estabelecida neste seminário entre a poesia - que busca escapar da prisão da significação - e a picaretagem (escroquerie), denominação lacaniana de um certo tipo de enunciados cujo objetivo é constituir Um sentido. Estes últimos se amparam no ideal da univocidade, recusando o duplo sentido, e delimitando um campo onde se propaga a paixão das "palavras vazias", sonho do puro enunciado sem enunciação. A filosofia será inserida neste espaço sendo descrita como "o campo de experimentação da picaretagem".Contudo, as críticas de Lacan à filosofia e sua "vontade de sentido" (vontade de redução do sentido a uma significação delimitada), não visam a introduzir uma apologia do duplo sentido e da ambigüidade. Ele não opõe à palavra pretensamente unívoca a palavra indecifrável, o puro sentido. A constituição de "palavras cheias" com dois, três ou dez sentidos não corresponde à operação poética em questão. Podemos perceber assim que a oposição palavra vazia x palavra cheia passa a segundo plano, em detrimento da oposição sentido x sem-sentido (pas de sens) representada pelos pares filosofia/picaretagem x psicanálise/poesia. Lacan relativiza assim uma oposição que desempenhou um papel fundamental nos primeiros anos de seu ensino pois ele considera aqui que tanto a palavra vazia quanto a palavra cheia se inserem no "sistema de oposições e de significações" da "lei do discurso" . Neste sentido elas não existem separadamente, funcionando apenas como entidades ideais ambas no nível do sentido. De fato, toda fala implica nessas duas suposições: a possibilidade de um sentido único e o duplo sentido. Enquanto a primeira persegue um ideal de univocidade a segunda, eterniza sua busca por encarnar seu fracasso. Em resumo, a oposição privilegiada neste ponto por Lacan se estabelece entre o que alimenta o sentido e o que se situa fora dos seus limites. O "próprio da poesia" é desvelar a ligação entre estes dois espaços. O efeito poético se dá assim não como Um sentido nem como um excesso de sentido (este é apenas uma variante daquele) mas sim como uma abertura ao sem sentido. Uma vez que este "além" (ou "aquém") do sentido corresponde ao real, e uma vez que o nó borromeano é a figura que permite situá-lo, poderíamos dizer a mesma coisa de outra maneira: a poesia torna possível a passagem do Um da significação à articulação ternária do nó.Esta operação poética é bem mais fácil de ser imaginada do que efetivamente realizada. Com efeito, o fala-ser é ancorado ao Um, a suposição de Um-sentido é estrutural. Falar do nó não basta para afastar esta dimensão totalizante descrita por Lacan como o "visgo" (engluement) do sentido, pois sua figuração se situa ainda a nível imaginário. Ela presentifica o Um e não o múltiplo que ele deveria traduzir. Entretanto, tentar rejeitar esta impregnação imaginária recusando o quadro da significação, implicaria em calar-se definitivamente, pois não há nada (de existente) para além deste. Deve-se então segundo Lacan "despertar", "abrir-se ao real", a partir do simbólico. Esta operação, que podemos chamar de efeito de sentido ou de interpretação, deve se dar como o corte que força em direção ao nó a partir das coordenadas fornecidas pelo Um da significação. Encontramos assim o que Lacan descreve como "o próprio da poesia": partindo de uma rede imaginária de significações dada, estabelecer uma determinada articulação simbólica que, através da suspensão mesma destas significações, convocará o real. Torna-se possível assim a instauração de um laço real e não mais imaginário entre os três registros, remanejando o real do sintoma. Esta articulação significante particular sobre a qual Lacan fundará o efeito da interpretação corresponde, como sabemos, ao equívoco .
Marcos André Vieira

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Viração


Nota-se no sujeito uma dificuldade ao lançar-se na busca de seu objeto, objeto libidinal. Para isso ele tem que se abdicar de algumas coisas, que muitas vezes pela interpretação que se dá ao não escolhido, o deixado, há uma vasta dificuldade. Como coloca Jorge forbes "Para ser feliz é necessario coragem". O homem que aposta no seu desejo, na direção do seu amor tente a ser mais bem vindo em sua própria casa. No livro Sapato Florido de Mario Quintana, creio que encontrei algo vinculado a essa ventura.


Viração


Voa um par de andorinhas, fazendo verão. E vem uma vontade de rasgar velhas cartas, velhos poemas, velhas contas recebidas. Vontade de mudar de camisa, por fora e por dentro... Vontade... para que esse pudor de certas palavras?... vontade de amar, simplesmente.

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Há um lugar para se criar


Há um lugar para se criar. Diante do Real, no qual o sujeito fica de mãos atadas diante da sua capacidade verbal, e que faz função de castração, nota-se uma ponte. Ela aparece transcrita em folhas de tamanhos variados, em alguns momentos grandes e em outros diminutas, em golpes de pincel , em conjunto de notas musicais a quem puder ouvir, mas sempre passando pela alma. Senhoras e senhores: A arte! Ela é uma necessidade da alma, na qual o homem se renova, um lugar onde se pode criar, mesmo que seja a mesma obra. O que vale é que ela venha com o tom de nova, mas como diria Mario Quintana: Quando chove é como se eu tive permanecido a 1977. E o quanto chove em um alma qualquer.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Real

Bom dia Real!

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Milágrimas


Em caso de dor ponha gelo

Mude o corte de cabelo

Mude como modelo

Vá ao cinema dê um sorriso

Ainda que amarelo, esqueça seu cotovelo

Se amargo foi já ter sido

Troque já esse vestido

Troque o padrão do tecido

Saia do sério deixe os critérios

Siga todos os sentidos

Faça fazer sentido

A cada mil lágrimas sai um milagre

Caso de tristeza vire a mesa

Coma só a sobremesa coma somente a cereja

Jogue para cima faça cena

Cante as rimas de um poema

Sofra penas viva apenas

Sendo só fissura ou loucura

Quem sabe casando cura

Ninguém sabe o que procura

Faça uma novena reze um terço

Caia fora do contexto invente seu endereço

A cada mil lágrimas sai um milagre

Mas se apesar de banal

Chorar for inevitável

Sinta o gosto do sal do sal do sal

Sinta o gosto do sal

Gota a gota, uma a uma

Duas três dez cem mil lágrimas sinta o milagre

A cada mil lágrimas sai um milagre


Alice Ruiz

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Psicanálise e Arte


As criações, obras de arte, são imaginárias satisfações de desejos inconscientes, do mesmo modo que os sonhos, e, tanto como eles, são, no fundo, compromissos, dado que se vêem forçadas a evitar um conflito aberto com as forças de repressão. Todavia, diferem dos conteúdos narcisistas, associais, dos sonhos, na medida em que são destinadas a despertar o inteesse noutras pessoas e são capazes de evocar e satisfazer os mesmos desejos que nelas se encontram inconscientes. À parte isto, fazem uso do prazer perceptivo da beleza formal, aquilo a que chamei um prémio-estímulo. Aquilo que a psicanálise foi capaz de fazer consistiu em captar as relações entre as impressões da vida do artista, as suas experiências causais e as suas obras e, a partir delas, reconstruir a sua constituição e os impulsos que se movem dentro dele. Não se deve julgar que o salaz que procura uma obra de arte se anule pelo conhecimento obtido pela análise. A este respeito é possível que o profano espere acaso demasiado da análise, mas deve advertir-se que ela não esclarece os dois problemas que são, provavelmente, os mais interessantes para ele: não esclarece quanto à natureza dos dotes do artista, nem pode explicar os meios de que o artista se serve para trabalhar a técnica artística.


Sigmund Freud, in 'O Pensamento Vivo de Freud'


segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Noites da Biblioteca - Dia 17 de Setembro (quinta-feira) - EBP - Delegação Parana


Escola Brasileira de Psicanálise - Delegação ParanáR. Tibagi nº 294 - conj1106Tel: (41) 3324-6432Horário da secretaria: Segunda a Sexta das 14:00h as 18:00h.
A Agenda Semanal pode ser visitada também pelo site: http://www.ebp.org.br/escola/delegacoes/del_parana/parana_ativa.html

Sobre Literatura e Psicanálise

Entre as palavras e as imagens,a verdade gosta de se esconder.*
"Não mente sempre a arte ? E não é quando mente mais que ela se revela mais criativa ?"
Kaváfis
Chama a atenção que em vários lugares do mundo, em quase todas as épocas, em todas as classes sociais, em todas as línguas, mesmo nas mais precárias condições de conhecimento da linguagem escrita, existam poetas. Podemos assim afirmar, de acordo com informações, acerca de manifestações em vários países e épocas diferentes. Assim os rimadóri, de Creta, os pyitárides de Chipre; também Bashô, rônin (ex-samurai), inventor do hai-kai e os poetas da literatura de cordel, no Brasil, vêm confirmar nossa tese; como tantos outros anônimos, que talvez façam sua aposta em uma função da escritura em versos, diferente da aposta editorial. Torna-se interessante assim, uma especulação em torno da causa que levaria a expressão humana à um tipo incomum de manifestação; a poesia escrita, o texto poético.Podemos inclusive pensar, que além da usualidade, essa marca característica da relação do homem com as palavras, acontece na escritura poética, o produto de uma relação verdadeira, visceral, se assim, em certos momentos e sentidos, podemos defini-la, entre os três termos da relação, o autor, a experiência/impressão e a língua/linguagem. Num certo aspecto, o poeta estaria de algum modo exercitando uma posição desperta em relação a realidade. As palavras, como elementos (i) materiais da realidade. Como as outras coisas materiais, são ao mesmo tempo também vívidas e prenhes de lembranças (memórias) e imagens. Consegue-se por este modo de conhecimento, necessário talvez, ao exercício da arte poética, ascender-se a um estágio de convivência com as coisas, e de exploração da realidade – com todos os seus objetos potenciais para os poemas - onde, mesmo os mais ínfimos e diáfanos aspectos da vida humana são objeto de observação, anotação e elaboração poética. O poema então, cultivaria esta relação com a verdade das coisas, tomando-se também as palavras como coisas, buscando aproximar-nos (o autor e o leitor) por uma leitura (i)mediata, da coisa-mesma, ou senão, da imagem da coisa. Seria, aproximadamente, algo que poderíamos comparar a uma tradução. Transmissão seria também a um primeiro exame, um termo apropriado à situação, uma vez que, se há o registro da experiência/impressão, houve ( haverá ?) a necessidade em se transmiti-la. Mas, qual seria a verdade de cada palavra ? De questões como estas decorre todo o amadurecimento de um poeta com relação à intenção e ao domínio técnico, da língua e de suas im-possibilidades. O simples desejo de transmissão desssa posição desperta, de leitor/intérprete, de onde os poetas de-cifram a realidade, invalida qualquer justificativa de Uma Verdade para todos os poetas, como para todos os homens. Um desejo de transmissão de uma vivência/impressão coincide com o genuíno, convicção do inédito; como responde Augusto de Campos, à uma pergunta do repórter Cláudio Daniel , na edição do Suplemento Literário de fev/2000: " Tudo já foi dito. Tudo é infinito". Enfim, o que é próprio à experiência de um só, e que, pode muito bem, coincidir com algo do universal, propriamente humano, como a própria linguagem – meio de transmissão, que se renova nos mesmos símbolos universais, para dizer de um novo modo, sob a pena de um outro poeta, o que já foi dito. Lembro aqui de uma passagem do filme American Beauty, onde certo personagem, obcecado por filmar a beleza, apresenta a sua namorada a coisa mais bela que filmara. Passam-se quinze minutos, em tempo de ficção da filmagem; a cena registra a imagem de um saco de papel bailando num redemoinho de vento. Ele traduz da observação das coisas, a percepção/impressão da beleza que há no mundo, de modo que, essa beleza nas coisas (imperceptível ao olhar descuidado) poderia tornar-se insuportável a ponto de fazer-lhe sentir o coração prestes a explodir. Leiamos que, ao homem é impossível e necessário tal não-percepção dessa belezanaturezaverdade, que o discurso poético sabe tão bem como aludir. Uma beleza que quem conhecer morre. Uma beleza além das possibilidades de conhecimento, de tradução no uso comum da palavra. Uma beleza que se esconde na realidade/natureza, como a verdade para os pré-socráticos filósofos/poetas gregos Parmênides e Heráclito. Mas, não seria assim até hoje, nesse mundo de semblants ? Aqui é necessário pelo menos um ligeiro apontamento sobre o ensinamento de Lacan em "Lituraterre", onde ele formula o "significante como o semblant por excelência", JL- De um discurso...pp 117 4.p., sendo a letra, possibilidade de ruptura desse semblant. Porém, qual a utilidade dessa formulação para os dois campos/experiências aqui tratados, senão a que, na experiência da análise, o efeito do inconsciente na letra, apontaria a via de um discurso sem palavras, discurso do analista que tem o objeto como causa. Além do fato de Lacan aludir em alguns momentos de seu ensino, à análise como uma escritura. Do lado da poética, a possibilidade de instauração de um fato não-verbal na escritura, além das palavras, seria uma possível e interessante leitura da discurso sem palavras que instaura o analista. Uma vez advertido de tal possibilidade, poderia o poeta colher dessa dimensão não-verbal também no real/realidade, a matéria-prima da poesia. Porém, existiria uma pluralidade de motivos, cuja variedade e intensidade conduziriam a, mais que uma necessidade de registro, de transmissão:"há tanta beleza no mundo que sinto que, em alguns momentos, posso vê-la de uma vez , é insuportável; sinto como se meu coração fosse sucumbir/explodir." A beleza das coisas ordinárias, como um saco de papel girando num redemoinho de vento.
A Poesia e o Real
Sabemos que o impossível de suportar, com Lacan, é o real. Para o qual não existe significação. Real esse, tão diverso e próximo da poesia, em nossa aproximação. Isto eqüivale a dizer que reside na poesia esse registro não-verbal. Isto podemos afirmar, dado o sutil desenvolvimento de algumas poéticas, notadamente, desde o fim do sec. XVIII, com o Lance de Dados..., de Mallarmé (1842-1898), onde o tratamento das letras e das palavras assume caráter material, onde a diagramação conflui para uma expressividade, onde a significação da letra na página, concorre para um reforçamento da idéia geral que o poema transmite. Nem por tratar a palavra como matéria, o poeta abole o acaso; na verdade, o grande tema de Mallarmé. Mallarmé, na definição de Lacan, faria "uma literatura de vanguarda que não se sustentava do semblant. Como o discurso do analista que também não se emite do semblant". Lacan, J. De um discurso que não seria do semblant. Seminário de 1971. Publicação Interna da Associação Freudiana Internacional, Centro de estudos Freudianos de Recife. Mallarmé descobre o poder da condensação, na escritura do verso e, em favor de uma poesia que diz de vários modos, vários sentidos de uma só vez, traz a imagem para um pouco mais perto do leitor, dando-lhe a impressão de que uma cena que contém várias outras, se apresenta; inclui a condensação, através de um trabalho minimalista com a letra, no rol da técnica da escritura. Sem contudo deixar de evidenciar sua função de letra, em mínimos movimentos que destacam-na como margem, borda, litoral entre o gozo (na escritura) e o saber antecipado no escrito. Na verdade, uma construção paradoxal, uma proposta que se apoia na letra e na palavra para alcançar o máximo de imagem, como se fora em algumas vezes, por encantamento, conforme definição de holófrase feita pelo próprio poeta, Mallarmé. Entre as palavras e as imagens, o real; real do mundo "feito de pulsões, tal como da mesma forma se afigura o vazio" idem pp 118. Explorando a intencionalidade na arte poética, tecnicamente, existiria, então, possibilidade poética numa construção literal, fazendo a margem da experiência entre o gozo do mundo pulsional, mundo das paixões, ordenado então na estrutura do poema, ou de uma construção pela via do semblant ou dos significantes-nuvem, conforme exemplifica ainda no mesmo seminário, a dimensão do semblant ao nível do significante, idéia que ele teria desenvolvido a partir de Aristófanes "... nuvens de ouro que literalmente tapam, escondem toda uma parte das cenas que se desenrolam nos lugares, lugares que são coisas que se desenrolam num outro sentido". Idem, pp117. Vislumbramos aqui, uma pista para o entendimento do interesse de Lacan por Mallarmé.
Sobre a Técnica na Poesia

Técnico, do grego, technikós, relativo à arte, pelo latim technicu. Etimologicamente, é bastante curioso que o adjetivo técnico, diga primordialmente, de orientação para o fim artístico. Tensionando ainda a etimologia, traremos do grego a palavra Método, de Méthodos- caminho para se chegar a um fim, intenção. Damos estas primeiras referências para fazermos frente a uma certa compreensão da poesia enquanto experiência calcada na primeira impressão, fruto mais da emoção, da inspiração, que do trabalho de escritura. Trabalho da técnica. Adiantamos que, nosso intento é o de dizer de uma técnica que combine sobre a emoção, a intenção e o acaso, o aleatório, efeitos de letra ou de deslocamento de sentido conforme efeitos de significante no verso. A palavra, na técnica da poesia, antes de ter por primazia a emoção, tem na intenção seu verdadeiro rumo. Técnica na poesia, tem relação com o ritmo, com a estrutura do poema e a exploração de recursos e possibilidades minimamente gráficas, fonéticas e imagéticas para fixar e/ou ampliar a idéia e as cenas do poema. O arranjo das letras na página, das palavras no verso, dos versos no poema, configuram entradas, janelas para cenas, imagens e sentidos propostos. O poema assim constitui uma referência simbólica que toca o real através de palavras e imagens. Essa construção dá-se em torno da emoção ou em torno de nada. Técnica diz da intenção, de um método, de um caminho, que supõe uma direção, que no caso da poética, então, não exclui os sentidos. Certos textos, na forma de uma escansão podem re-velar sentidos legíveis isoladamente, mas que no conjunto do poema reforçam uma idéia geral. Como por exemplo, numa aquarela, as cores do guache compõem um conjunto. Em lugar dos matizes da cor, as nuances de sentidos das palavras. Em lugar do quadro, o poema. A obra sustenta assim, em seu conjunto a possibilidade de vários elementos tensionados em torno de um idéia. Pensando nesse rumo, não é demais propormos a possibilidade de uma técnica que se defina segundo princípios como o aleatorio. O aleatório, bem pode ser sujeito à determinação da intenção a posteriori; como o surgimento de uma palavra no ato da escritura, momento não calculado de valorização de uma memória de vida (impressão) ou memória de leitura; pois sabemos, somos habitados por palavras. Novamente uma consideração kavafiana sobre a experiência do poeta com as palavras arcaicas, palavras relembradas:" Um dos talentos dos grandes estilistas é fazer com que, pelo seu modo de empregá-las, palavras obsoletas deixem de parecer obsoletas. Elas ocorrem com maior naturalidade nos textos deles, ao passo que nos de outros parecem afetadas ou fora de lugar. Isso se deve ao tato & discernimento de tais escritores, que sabem quando - & somente quando – o termo em desuso pode ser empregado & revelado artísticamente agradável ou linguisticamente necessário; & então ele só é obsoleto de nome. Trouxeram-no de volta à vida as naturais exigências de um estilo vigoroso ou sutil. Não é um cadáver desenterrado (como no caso de escritores menos capazes) mas um belo corpo despertado de um sono longo & reparador. " K.Kaváfis, Reflexões sobre poesia e ética, pp. 59 Situemos o aleatório ao lado do inesperado, da palavra inesperada advinda de um des-conhecimento cultivado desde a leitura e do conhecimento da poética de vários autores e, derivado da própria relação com a causa particular que articula o ser na poesia, com o mundo das palavras e, imprime ao poeta a urgência de escrever, transmitir. Podemos mesmo propor uma técnica, então, que afine intenção e acaso. O acaso, conforme Lacan, em Lituraterre, está do lado da letra, do lado do efeito significante também. Nossa atenção particularmente estaria voltada, desde o conhecimento de Mallarmé e de Lacan, para a letra. Letra que presentifica o inconsciente na cadeia de significantes e, também na escritura poética. No meio do caminho haveria a letra.... Mas, haveria afinidade entre uma técnica de escritura poética e uma técnica analítica na direção da cura? Para continuarmos é preciso que estabeleçamos, como fundamento para nossa reflexão indicadores de similaridade e distinção entre os termos da relação e literatura e psicanálise e, em assim sendo, propomos desde já uma ruptura radical entre ambas, em termos de uma influência poética na técnica psicanalítica, salvaguardando a arte poética em ter que se haver com a clínica, e à psicanálise de um equívoco. Entretanto, é interessante observar que a experiência analítica desenvolve-se no campo da linguagem, estando portanto, submetida à efeitos de e no discurso. Se pudermos tomar o discurso/texto da análise como texto/escritura, conforme alude Lacan, e o que através desse texto resta por traduzir-se em palavras, já teríamos um ponto de partida. O campo onde articulam-se os elementos da poética é o mesmo Outro campo onde inscreve-se o sujeito do inconsciente, a saber, a linguagem. Em todos os casos, o texto poético expõe uma relação de subversão da língua pelo escritor, onde a produção de certos efeitos dirige-se à construção de sentidos, imagens ou cenas e, em assim sendo, de uma intencionalidade. A forma e suas partes devem se articular de modo a possibilitar esta leitura (i)mediata da imagem. É importante ressaltar que esse trabalho é em parte influenciado pelo inconsciente. Determinados poetas podem atribuir ao dom poético, expressão tão adequada à ficção e à literatura, às manifestações de um Outro sobre si, outros podem tentar transmitir o sentimento de mundo, depuração da existência, outros podem simplesmente encarar como um ofício, o trabalho de um ourives sobre a jóia. Dificilmente todos estes escaparão do movimento aleatório que é o trabalho permanente de irrupção do inconsciente, efeito da e na escrita, mais ou menos filtrado ou antes censurado entre as limalhas dos excessos de cada verso. } Daí certa sinceridade fundamental, não-intencional, porém intensional, presente na obra de grandes poetas, em meio ao fingimento poético. Isto poderia servir-nos para definir, de certo modo, o universal numa obra literária. Manteremos a questão, se poderíamos investigar na escolha da escrita como forma de expressão, uma relação com a causa do desejo. Alguns trabalhos de Freud, procuram dar conta desse tipo de questão. Só para lembrarmos alguns, mencionaremos seu artigo sobre Leonardo da Vinci, onde investiga uma pulsão de conhecimento, desejo de saber, relacionado ao modo como alguém - nesse caso da Vinci- obteve a transformação da libido em seu objetivo sexual, em investimento no objetivo artístico. Freud relaciona esta capacidade de transmutação pulsional à uma vivência infantil, o confronto com a questão sexual, que se traduziria em uma de suas variações, na curiosidade em torno do nascimento, sendo assim formulada, "de onde vêm os bebês ?". Desse trabalho de investigação e pesquisa sexual infantil, derivaria todo o investimento pulsional necessário a que se formasse no indivíduo uma preocupação intelectual; de pesquisa ou de criação. Citemos Freud: "Algum tempo após o término das pesquisas sexuais infantis, a inteligência, tendo se tornado mais forte, recorda a antiga associação e ajuda a evitar repressão sexual ( ou recalcamento) e as suprimidas atividades de pesquisa emergem do inconsciente sob a forma de uma preocupação pesquisadora compulsiva, naturalmente sob uma forma distorcida e não-livre, mas suficientemente para sexualizar o pensamento e colorir as operações intelectuais, com o prazer e a ansiedade características dos processos sexuais..." Freud, ESB vol XI pp. 74. A questão sexual, enquanto motor das experiências intelectuais, encontra sua base numa teoria acerca do pai e sua implicação na primeira questão sobre os bebês. Outros desenvolvimentos fazem também uma interpelação à psicanálise. Lembramos do caso de Anne Sexton, poeta americana dos anos sessenta, contemporânea de Sylvia Platt. Uma dona de casa que tratava-se psiquiatricamente, tendo-lhe sido, casualmente apontada a via da escrita como função (terapêutica ?) sobre a angústia que a afligia. Iniciou intensa produção poética sobre temas como o feminino, a masturbação, o tédio, o casamento, o homossexualismo e a solidão. Seu caminho na literatura culminou num prêmio Pulitzer na década de sessenta. Há muito o que se pensar em casos como esse; sobre esse tênue véu que separa a dor, do fingimento e a ficção, da realidade, sobre uma visceral necessidade da escrita. Ou sobre uma necessidade de ordenação que encontra na escrita e na escritura uma viabilidade para uma estabilização; já que sustentamos que o inconsciente enquanto efeito de frase, verso ou letra transita pelo poético. Seria também o caso de pensarmos em termos de vice-versa ? Alguns poetas, dentre eles Fernando Pessoa e Konstantinos Kaváfis, trataram dessa relação entre o fingimento e a verdade na poesia. Kaváfis, chegou a escrever : "Não mente sempre a arte ? E não é quando mente mais que ela se revela mais criativa ?". Kaváfis, parece estabelecer a sinceridade do lado da impressão, que, por seu turno, sendo impressão da experiência vivida (aqui notamos certa afinidade com a questões de Freud sobre a percepção e a memória, vide carta 52), pode ou não ser utilizada imediatamente como tema da escritura. Porém na arte, verifica-se que, as impressões ‘artísticas’ demoram a ser usadas "e quando, enfim se cristalizam em palavras escritas, é difícil lembrar a ocasião primeira onde nasceram e de onde se originaram as palavras escritas". Neste depoimento de Kaváfis, um exemplo de como na arte as impressões prestam-se, desejosamente, à distorção e à acomodação segundo a sinceridade para com a arte. Passo à transcrição integral de uma anotação de um de seus livros póstumos, onde ele mesmo diz desse real que se interpõe entre a impressão, a memória e a verdade: "Da impressão, ou pouco depois dela, surge o poema. A impressão – sensual ou intelectual – era viva e sincera; o poema ( não forçosamente porque ela o fosse, mas por uma feliz coincidência) também é belo, vivo e sincero. O tempo passa. A impressão – seja pelo concurso de outras circunstâncias antes desconhecidas, seja pelo desenvolvimento das coisas ou pessoas que a suscitaram – parece agora vã e risível. Assim também o poema. Não sei se é justo. Por que deslocar o poema da atmosfera de 1904 para atmosfera de 1908 ? ( ainda bem que os poemas são muitas vezes crípticos; podem assim acomodar-se a outros sentimentos ou circunstâncias conexas.)" Kaváfis, K.- Reflexões sobre poesia e ética- Tradução do grego por José Paulo Paes, Editora Ática, 1998, SP. Sinceridade, nesse contexto, aponta a coerência entre a impressão primeira e a forma ulterior da obra, o que reforça uma idéia segundo a qual, de acordo com a intencionalidade, que citamos como um vetor para o escritor, o exercício da escritura seria a via pela qual tal coerência se instauraria. Exercício da intenção, exercício na intensão. Assim instaurando a intenção, que exige o apuro do recurso e concerne à técnica, alcançaríamos o nível da ficção. Tanto melhor será se essa ficção comportar um breve traço da realidade que a ocasionou. Na obra que distorce a primeira impressão, aproveitando-lhe alguns fragmentos, persiste um caráter mais ou menos universal, posto que, pode dizer de algo verdadeiro para vários outros homens, como um traço verdadeiro "de uma breve passagem" recolhida pelo poeta, de uma vivência anterior. Se há uma causa que determina a relação de um sujeito com a escrita, poderíamos dizer que a escritura poética é uma alternativa de bordejamento do real em sua circularidade discursiva ( a da escritura ). Incorporando tal circularidade como concernente ao método, definiríamos poesia como o inapreensível, e o poema como resto simbólico de uma operação de captura. Esse produto, o poema, além de restar enquanto arte, inaugura um limite conquistado no trabalho de escritura, no projeto de cada poema. Pois, em poética, considerando-se o acaso, e certo a posteriori nos limites da interpretação, um poema pode antecipar-se ao autor pela via de uma de suas significações, pode tratar com profundidade um tema em alguns poetas ou com abrangência o mesmo tema em outros, desde que com a maturidade ex-cêntrica do lugar do poeta, seu exercício, sua ética. Um singelo exemplo na descrição do romancista inglês E.M. Forster, de Konstantinos Kaváfis, "um cavalheiro grego, de chapéu de palha, estacionado num ligeiro ângulo de afastamento em relação ao universo", valho-me desta descrição para aludir à possibilidade de tratar-se sempre para o poeta, de uma outra posição subjetiva, uma posição de afastamento, de distanciamento em relação ao universo simbólico. Como alguém que conheceria, des-conhecendo, o mundo das palavras e das coisas, e do intervalo real de onde decorre a possibilidade da poesia, mas também da angústia e de todas as outras conformações subjetivas, que são, em realidade também discursivas . Talvez disso os poetas saibam, embora talvez, também nem sempre disso se valham. Pois, poderíamos pensar que a escritura, a literatura, seria uma tábua de salvação no mar de angústia e de símbolos que comporta a existência, se é, nem sempre o é para todos. Vários pontos dessa relação entre a escrita, a angústia e a verdade, bem como a memória e o esquecimento, interessam à psicanálise, porque parecem interrogá-la sobre um modo particular de relação com o inconsciente, que o escritor no ato mesmo de sua escrita, dispõe como ficção. Ao que parece por mais oculta que esteja a relação com a primeira impressão verdadeira, motivadora da obra, esta permanece no conjunto como apenas um traço. No caso da obra de arte, o que seria considerado repressão e teria como efeito o sintoma, assume uma conotação estética e mantém em aberto uma possibilidade intelectual, de prazerosa convivência com um fragmento de verdade, na obra de arte, o poema.
BIBLIOGRAFIA
BONVICINO, Régis- A Função da Poesia- in, PopBox Verse Poetry poesia em
CASTELLO BRANCO, Lúcia- Não há Literatura, in,
FREUD, S.- Significação Antitética das Palavras Primitivas, A. ESB. Vol XI, pp
130.
Leonardo da Vinci, Uma Lembrança de Sua Infância. Idem, pp 53.
Carta 52, de 6 de Dezembro de 1896, vol I, pp.254.
Ficção e (Loucura) Fine Frenzy , idem, pp. 276.
LACAN, J- Lituraterre, in De um Discurso Que Não Seria do Semblant.
Seminário de 1971. Publicação para circulação interna do Centro de Estudos Freudianos do Recife- Comissão editorial 1995/1996.
KAVÁFIS, K.- Reflexões Sobre Poesia e Ética- Tradução direta do grego e. apresentação de José Paulo Paes. Editora Ática, SP. 1998

Poemas, Coleção Poesia de Todos os Tempos. Tradução de José Paulo
Paes- Editora Nova Fronteira S/A . RJ. 1998.
MALLARMÉ, Stéphane- Um Lance de Dados Jamais Abolirá o Acaso –
Traduções e Estudos Críticos por Augusto e Haroldo .
de Campos, Décio Pignatari., Ed. Perspectiva, 2@ edição, SP, 1974.
MOREIRA, S. Max- Uma Palavra. Texto de 1988. Não publicado.
GARCIA-ROZA, L. Alfredo- Palavra e Verdade na Filosofia Antiga e na
Psicanálise. Coleção Textos de Erudição e Prazer. JZE. RJ. 1990.
POMMIER, Gérard- A Leitura Literal do Saber Inconsciente, A Escansão.
In, O Desenlace de Uma Análise. JZE, RJ, 1990.
PESSOA, Fernando- Obra em Prosa, Ed. Nova Aguilar S/A, RJ., 1998.
por:
Max Moreira é poeta e psicólogo. Autor de Alaridos, Anome livros, 2002.maxsm@uol.com.br

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Por não estarem distraídos



Havia a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como quando se sente a garganta um pouco seca e se vê que, por admiração, se estava de boca entreaberta: eles respiravam de antemão o ar que estava à frente, e ter esta sede era a própria água deles. Andavam por ruas e ruas falando e rindo, falavam e riam para dar matéria peso à levíssima embriaguez que era a alegria da sede deles. Por causa de carros e pessoas, às vezes eles se tocavam, e ao toque - a sede é a graça, mas as águas são uma beleza de escuras - e ao toque brilhava o brilho da água deles, a boca ficando um pouco mais seca de admiração. Como eles admiravam estarem juntos! Até que tudo se transformou em não. Tudo se transformou em não quando eles quiseram essa mesma alegria deles. Então a grande dança dos erros. O cerimonial das palavras desacertadas. Ele procurava e não via, ela não via que ele não vira, ela que, estava ali, no entanto. No entanto ele que estava ali. Tudo errou, e havia a grande poeira das ruas, e quanto mais erravam, mais com aspereza queriam, sem um sorriso. Tudo só porque tinham prestado atenção, só porque não estavam bastante distraídos. Só porque, de súbito exigentes e duros, quiseram ter o que já tinham. Tudo porque quiseram dar um nome; porque quiseram ser, eles que eram. Foram então aprender que, não se estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os fios. Tudo, tudo por não estarem mais distraídos.


(Clarice Lispector)