quarta-feira, 14 de outubro de 2009

O Corvo, o Analista e a Interpretação Part III

O ANALISTA E O CORVO
O corvo coloca em evidência, devido à sua inserção ambígua no campo da fala, a materialidade de seus ditos. Infelizmente (para o analisante) o analista não é um corvo, seus enunciados se dão assim mais "naturalmente" carregados de sentido. Torna-se talvez necessário jogar mais com a homofonia, visando a suspender a significação. O corvo nos mostra entretanto que o lugar de onde se enuncia a interpretação é tanto ou mais fundamental que os meios formais utilizados na sua construção. Com efeito, ele não precisa produzir uma palavra cheia a partir de um material fônico ou ortográfico equívoco. O efeito interpretativo se dá a partir de uma palavra corrente da língua que adquire uma tonalidade ambígua em função do lugar de onde ela foi enunciada. É por isto que o silêncio ou o ato de escansão da sessão da parte do analista têm valor de interpretação. Tratam-se de momentos que podem amplificar ao máximo a suspensão da significação, os quais só têm efeito porque se apóiam em uma lógica própria ao inconsciente que faz com que a presença do analista torne seus silêncios eloqüentes e suas falas literais. São maneiras de se assemelhar ao corvo que não nos liberam porém do uso de palavras. Pelo contrário, estas ações só terão um alcance interpretativo na medida em que elas tenham um supporte significante e alojem-se numa rede de significações.Parece claro então que para que haja interpretação é necessário que um dizer apoiado no sentido seja proferido e que este dizer se enuncie a partir de uma posição en consonância com a lógica do inconsciente (incluindo o que esta lógica tem de temporal). Somente assim o real da presença do analista poderá irromper na análise. A interpretação poderá assim através da sua materialidade fisgar o analisante conduzindo-o ao limiar do sentido. Encontramos então de um lado a ambigüidade significante, formal, e do outro o ser do analista que a constitui enunciando-a. Temos assim dois aspectos constitutivos da interpretação. Se por um lado ela remaneja os significantes mestres da história do analisante, por outro captura a pulsão na transferência. São duas vertentes indissociáveis que só se concebem a partir do corte interpretativo reproduzindo "aquilo pelo qual se unem fortemente o som e o sentido".Ressaltar uma posição subjetiva em consonância com a lógica do inconsciente remete-nos ao "x" do desejo do analista. Este desejo pode ser concebido como aquilo que permite ao analista falar do lugar do corvo (onde podem existir palavras mas onde não existe fala) aceitando a dessubjetivação que isto implica. Este porém, não deve ser concebido como o lugar de uma verdade dessubjetivada, a não ser que a situemos no campo do gozo. Com efeito, trata-se menos de fazer o Outro falar, entregando ao sujeito uma verdade que lhe preexiste, que de fazer ressoar a fala "como tal" ou seja "sem a intermediação do Outro" .Este pode ser um outro ângulo para se abordar a dinâmica da transferência. Ele nos permite uma melhor compreensão do que parecia constituir um paradoxo, isto é, a idéia de que a interpretação instaure a transferência e, ao mesmo tempo, que a interpretação não tenha sentido fora da transferência. Basta supor que o desejo do analista preexiste à análise, dando origem à interpretação e à transferência. É o que se passa em nosso poema pois o neófito é empurrado para dentro da relação transferencial pela palavra interpretativa do corvo. Seria até mesmo possível estabelecer uma progressão lógica das relações entre o neófito e a ave: da imagem do corvo como matriz inicial à fala interpretativa deste (com as modificações subjetivas que ela comporta), remetendo o neófito à causa de seu desejo.A ambigüidade significante inscreve-se assim nas significações do analisante fisgando-o e conduzindo-o ao limite, ao horizonte do ser. O gralhar do corvo corresponde à resposta que ele recebe do Outro e à voz que o arranca de suas determinações. O percurso de uma análise pode ser concebido então como uma progressão na direção de um esgotamento das significações do sujeito (de seus significantes fundamentais), no qual a fala interpretativa aumenta progressivamente a clivagem entre o sujeito e seus significantes, separando-o desta cadeia até que eles apareçam em todo seu peso de gozo. O sujeito, visando o objeto e aferrado ao ser, pode neste momento se dar conta de seus grilhões significantes e ao mesmo tempo de sua abertura à contingência radical do real.

NOTAS
LACAN, J. Cf. ainda: "só a poesia permite a intepretação" ou ainda "é porque a interpretação toca o real que a verdade se especifica de ser poética". Estas passagens se encontram na aula de 19/4/77 que concentra junto com a de 15/3/77 as refererências que citaremos a seguir. Cf. "Vers un significante nouveau" in: Ornicar?, 17/18, p.15-16.POE, E. A. "The Raven". Citamos aqui a tradução em português de Fernando Pessoa.POE, "La genèse du poème" in: POE, E. A. Edgar Allan Poe: contes, essais, poèmes. Collection Bouquins, ED. Robert Lafont, Paris, 1989..Mot plein no original. O termo francês plein remete em português a dois significantes: "cheio" e "pleno". Optamos pelo primeiro, devido ao caráter concreto que Lacan lhe confere aqui, não mais relacionado à problemática do sujeito, como na concepção da fala plena (parole pleine) de seus primeiros seminários. Esta distinção fica ainda mais clara ao se observar que neste ponto ele utiliza mot e não parole, indicando não se tratar de fala mas de palavra, reforçando seu sentido material.Cf. "Aquilo que enunciamos sempre, poque é a lei do discurso, é isso mesmo que deveríamos superar". Ibid. Não poderemos retomar em detalhe a distinção entre palavra vazia e palavra cheia que são intrinsecamente ligadas à fala vazia e fala plena. Estas noções foram trabalhadas de maneira aprofundada por Pierre Bruno em seu seminário de DEA do Departamento de Psicanálise de Paris VIII de 93-94 (inédito). Boa parte das reflexões que apresento aqui foram possíveis graças a este seminário das quais já pude dar uma noção antes: Cf. VIEIRA, M. A. "L'inteprétation, l'équivoque et la poésie" in: La letre mensuelle n° 139. Cf. Também BRUNO, P. "Un sésame de oui" in: La lettre mensuelle n° 136.Este termo em francês (équivoque) tem um sentido bem mais próximo da ambigüidade e da suspensão da significação que em português no qual é muito freqüentemente assimilado à "erro" ou "engano". Seu sentido original em nossa língua entretanto é próximo ao do francês.Na aula de 19 de abril deste seminário, Lacan nos proporá uma experiência topológica com o toro entrelaçado (retomada e comentada por Pierre Bruno). Ele demonstra através de um objeto constituído a partir do toro e composto de vários anéis articulados que reproduzem a articulação das palavras, que o próprio da poesia é a articulação não de uma palavra vazia a uma outra (fala vazia) nem de uma palavra cheia a uma outra (fala plena), mas de uma palavra cheia a uma palavra vazia. Cf. por exemplo: "A psicanálise [assim como a poesia] pode ser uma picaretagem, mas não como as outras. É uma picaretagem que vem a calhar com aquilo que é o significante" ou ainda: "Tudo que se diz é uma picaretagem (...) o que se diz do inconsciente participa do equívoco" LACAN, J. Ibid.Optei por "lacuna" ao invés de "buraco", embora este último termo correspondesse à tradução mais literal de trou, termo utilizado por Lacan nesta passagem, porque este tem em francês um sentido bem menos concreto que seu equivalente em português.JAKOBSON, R. Six leçons sur le son et le sens, Paris, Minuit, 1976. pp.21-23.ECO, U. "De Aristote à Poe" in: Nos grecs et leurs modernes, Paris, Seuil, 1992.O próprio Edgar Allan Poe afirma ter escolhido esta palavra pala sua "faculdade onomatopeica", virtualmente encerrada em seus sons. Além disso a escolha do corvo se justifica também a partir de seu estatuto ambíguo quanto à fala: entre homen e animal, o papagaio foi descartado pois anularia todo o efeito trágico. Cf. "La genèse du poème" art.cit .Cf. e Jakobson op. Cit. SOLER, C. "Sur l'interprétation" in: La letre mensuelle n° .Em sua tradução Fernando Pessoa, descarta este nome, fundamental no texto original e que é mantido em sua tradução francesa, seja a de Baudelaire seja a de Mallarmé.Cf. LACAN, J. Le séminaire Livre XVII pp. 39-40.MILLER, J.A. "Silet" (seminário inédito), aula de 18/1/1995.

*Poema O Corvo de Edgar Allan Poe